“Eu não tinha por que me envolver, mas acabei me envolvendo pela vaidade da vida. A gente que vem de periferia muitas vezes quer conquistar e muitas vezes procura o caminho mais fácil, mas, no decorrer do caminho, fica bem difícil, porque a cadeia não é um lugar fácil de se conviver”. A afirmação é do vigilante Sérgio Silva, de 39 anos, egresso do sistema penitenciário do Piauí. Sérgio ficou encarcerado por dois anos e viu, com os próprios olhos, e sentiu, na própria pele, como é a realidade da cadeia.
“Cria da periferia”, Sérgio viu muitos jovens, como ele, perderem a vida por se envolverem com a criminalidade. Como diz a música de Mano Brown, “um efeito colateral do sistema”. Para a sociedade, eles são, nada mais do que, “revolucionários, insanos ou marginais” e o crime é a alternativa possível. Por isso, mesmo trabalhando formalmente na época, Sérgio decidiu trilhar o caminho fácil. Foi o que o levou direto para um dos presídios mais famosos do Piauí, a penitenciária Professor José Ribamar Leite, antiga Casa de Custódia.
Após ser preso por infringir a lei, Sérgio entrou no sistema e, como outros mais de 4 mil detentos do Piauí, precisou enfrentar as consequências do crime que cometeu. O medo, a vergonha e a opressão eram os sentimentos mais presentes durante o tempo em que permaneceu encarcerado. O vigilante é uma das testemunhas do que a prisão pode fazer com uma pessoa: levá-la ao limite da sua própria humanidade.
“Tem pessoas lá que são bem inteligentes e outras que estão lá maquinando o mal o tempo todo. Tem outras pessoas que estão lá injustamente. Outros que já estão lá há muito tempo. É um clima pesado porque, infelizmente, o sistema não é 100% seguro. De certa forma, você tem que ter a cabeça muito boa para não se deixar levar pelo que rola na cadeia. Mas é um clima bem pesado. No tempo que eu estava lá, pessoas foram mortas lá dentro”, lembra.
As implicações pelo envolvimento com o crime, no entanto, não se limitam a quem está atrás das grades. A família dos detentos também é "aprisionada" pelo sistema. A liberdade para voltar para casa é apenas um ponto em uma série de fatores que reverberam até mesmo naqueles que ainda não compreendem, de fato, o que é certo ou errado. Isso, para alguns, pesa até mais do que a própria pena.
“Tenho quatro filhos. O que eu vivi me ajudou a ser um homem diferente agora. Tudo que eu passei lá, me fez ver as coisas de modo diferente. Ver meus filhos irem para a Casa de Custódia para me visitar. O constrangimento da minha esposa em ter que entrar lá no dia de visita íntima e ter que ir para uma revista mais minuciosa. Todo esse processo de certa forma constrange. E isso me deixou muito triste ao ponto de não querer isso nunca mais”, destaca Sérgio Silva.
E foi esse desejo de não querer voltar para o cárcere e não submeter mais a própria família a situações constrangedoras e vexatórias que fez o ex-detento Sérgio Silva querer mudar de vida. Ao sair do presídio, em 2018, ele decidiu recalcular a rota e ser um pai e um marido melhor. O crime não era mais uma opção. Por isso, Sérgio Silva buscou outras formas de tentar garantir o sustento da sua família. O caminho difícil, mas pela lei.
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"O caminho mais difícil"
O que muitos não sabem é que a condenação pelo crime não termina com o fim da pena. A liberdade vem com um preço e esse preço, às vezes, é muito alto. Para a sociedade, é difícil conseguir distinguir a pessoa que cometeu o crime do criminoso. Isso se reflete no preconceito que os egressos do sistema prisional precisam encarar para conseguir sair da criminalidade e se reintegrar à sociedade. Sozinhos, muitos não conseguem ter oportunidade de estudar ou conseguir voltar ao mercado de trabalho.
“As pessoas olham muito torto, pelo que você passou e pelo que você fez. A gente tem um pouco de receio disso. Nem todo mundo te trata bem. Por mais que você não esteja mais naquele meio, você sempre vai ser visto daquela forma e isso te traz o receio de falar, de estar no meio da sociedade, porque, querendo ou não, a sociedade de hoje julga”, afirma.
Por isso, iniciativas como o Escritório Social, serviço que faz parte do programa Fazendo Justiça, executado pelo Tribunal de Justiça do Piauí (TJ-PI) em parceria com o Conselho Nacional de Justiça e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD/ONU), são importantes para que essa reintegração à sociedade aconteça. Os egressos atendidos por esse equipamento público têm a oportunidade de receber orientações sociais, psicológicas e jurídicas e encaminhamentos a políticas públicas e serviços gratuitos diversos, por intermédio de articulação e parceria com órgãos públicos, empresas privadas e organizações da sociedade civil. Sérgio Silva é um dos exemplos de como o projeto funciona e oportuniza que os ex-detentos possam reconstruir suas vidas.
“Eu fiz o vestibular pela primeira vez dentro da Custódia, mas não passei. Quando eu saí, no final de 2018, fiz o vestibular de novo através do Escritório Social. Hoje, eles oferecem cursos para o pessoal do sistema e tem muitas vagas de emprego. Mas é aquela coisa, quem está nessa vida, muitas vezes quer a coisa do jeito fácil, não aproveita a oportunidade que eles dão. E eu fui pelo contrário, eu disse: ‘Não. Eu vou aproveitar estas oportunidades’. Meus filhos também já fizeram um curso lá”, enfatiza.
Hoje, Sérgio Silva é formado em Logística e trabalha como vigilante para uma empresa terceirizada que presta serviços para a Prefeitura Municipal de Teresina. A luta, agora, é para manter os quatro filhos longe da criminalidade e empenhados em construir a vida, mesmo que pelo caminho difícil.
“Quantas e quantos jovens, meninos ainda, que eu vi perderem a vida aqui onde eu moro por besteira? Essa minha passagem pela prisão me transformou. De dizer assim ‘eu não quero mais isso para mim’ e viver uma vida totalmente diferente”, conclui.
Exceções que viram a regra
Sérgio não é uma exceção. Assim como ele, vários outros detentos estão dentro do sistema prisional em busca de uma oportunidade para conseguirem se reintegrar à sociedade e sair do mundo do crime. Por isso, é dever do Estado garantir que os apenados, indistintamente, consigam ter a oportunidade de ressocialização. É o que explica Marcus Klinger, juiz auxiliar da Vara de Execuções Penais e coordenador do Grupo de Monitoramento e Fiscalização (GMF).
“A gente não pode fugir desse caráter humano da ressocialização da pena. Separar a pessoa que cometeu o crime do criminoso é muito difícil. Falam que ‘a justiça pune’, mas ela cumpre a lei, executa o que está na lei e as responsabilidades por quem fez. Lógico que as consequências vão existir, e muitos deles sabem disso. Sabe o que fizeram. Mas muitos buscam a ressocialização. O nosso trabalho é tentar ressocializar todos indistintamente. A gente não pode escolher quem vai ressocializar. Todos estão ali para serem ressocializados e isso é observado e classificado dentro da individualização da pena”, explica o magistrado.
A lei nº 7.210/1984, que é a Lei de Execução Penal (LEP), é ampla e garante os direitos dos apenados em diversos âmbitos, como à saúde, à religião, à assistência social e à educação. A LEP determina que é dever do Estado salvaguardar a assistência ao preso e ao internado, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade. Se levada à risca, a legislação busca impedir que os detentos permaneçam dentro do presídio de forma improdutiva, dando-lhes a oportunidade de estudar e trabalhar.
Vale lembrar que a ressocialização é um princípio previsto pela Constituição Federal. A ideia central é a de que o sistema de justiça criminal não deve se limitar a apenas punir o infrator, mas oferecer a ele condições de se reintegrar à sociedade de forma saudável e produtiva. O próprio artigo 1º da Lei de Execução Penal estabelece como objetivo do cumprimento da pena “a efetivação dos direitos do preso, com a finalidade de promover sua reintegração social”. O objetivo maior é evitar que essa pessoa reincida no crime após finalizado o tempo de encarceramento.
A LEP estabelece ainda o sistema progressivo de cumprimento de pena no qual o apenado pode obter benefícios como liberdade condicional, semi-liberdade e a prisão em regime aberto caso tenha bom comportamento e participe de programas de ressocialização. Em alguns casos os apenados que se engajam nestes programas podem inclusive ter sua pena reduzida. Apesar disso, ainda é um desafio para o sistema penitenciário estabelecer mecanismos que façam com que o apenado progrida no seu convívio social.
“Esse é um trabalho permanente. É um grande desafio para o Piauí e para o Brasil, cuidar e tratar da população carcerária. Essas pessoas que vêm ao sistema penitenciário, se não trabalharem, se não tiverem uma profissão para retornarem e descobrirem que, com o suor do rosto eles podem sustentar suas famílias, eles voltam ao crime. E a nossa tentativa, nosso trabalho diário, é para oportunizar às pessoas que cumprem pena no Piauí as condições de retornarem às suas famílias e à sociedade transformados, melhor do que quando entraram aqui”, diz o secretário de Justiça do Piauí, coronel Carlos Augusto Souza.
Na Colônia Agrícola Major César, localizada na cidade de Altos, unidade do regime semiaberto, cerca de 50% dos 851 apenados exercem algum tipo de atividade laboral, interna ou externa. Um dos postos de serviço oferecidos aos internos é o de pedreiro. É que a unidade está passando por reformas e os próprios apenados trabalham na construção dos novos pavilhões. Com as mãos deles são erguidos os espaços que vão abrigá-los. Mas longe de pensar que estão construindo o próprio cárcere, os internos que trabalham na reforma da Major César entendem que isso é um meio para um fim maior: eles aprendem e exercem uma profissão lá dentro para saírem tendo a oportunidade de ingressar no mercado de trabalho na área da construção civil.
Mas o serviço não é feito de graça e a recompensa por ele é justamente a liberdade. A cada três dias de trabalho, o detento tem um dia de pena remido. Significa dizer que se escolher trabalhar e se empenhar naquilo, o interno pode sair mais cedo. Mas esta remição se limita a até um terço do tempo de pena.
Uma volta por dentro da Colônia Agrícola Major César e é possível ver o resultado do trabalho dos presos. Pavilhões novos, revitalizados, espaços mais humanizados e mais salubres para recebê-los.
“Podemos percorrer internamente e vamos ver todos os pavilhões reconstruídos, pavilhões que não tinham mais nem internos dentro porque não tinham condições de habitação humana. Estão todos reconstruídos por eles mesmos, produzindo blocos e utilizando a mão de obra carcerária para pintar, fazer e refazer. O desafio é grande e temos que estabelecer uma diretriz que seja permanente de estudo, de trabalho e de profissionalização dentro do sistema penitenciário para que possamos estancar a reincidência”, ressalta o secretário de Justiça, Carlos Augusto Souza.
Oportunidade de profissionalização é o que centraliza o interno Carlos Augusto Alves de Sousa, de 28 anos. Quando ele fala em “centralizar” está falando em se manter longe da ideia de voltar para o crime e de investir mais em si como cidadão. Carlos está executando os trabalhos de construção dos novos pavilhões. Segundo ele, o serviço dentro do presídio é uma oportunidade de aprender uma profissão, mas também de encontrar uma motivação para mudar de vida ao fim do seu tempo de pena.
“Hoje, eu me encontro em uma situação em que eu preciso mudar de vida, porque a vida que eu estava levando, não era uma vida muito favorável. Hoje, eu estou pagando por coisas que fiz e situações que causei e, através disso aqui, eu posso conseguir um emprego lá fora. Já aprendi muita coisa que já dá para usar como experiência quando sair. Se eu arrumar um serviço, já posso dizer que tenho experiência naquilo que eu tenho aprendido aqui dentro”, diz.
Diferente da Casa de Custódia, que recebe detentos no regime fechado, a Colônia Agrícola Major César, por ser uma penitenciária do regime semiaberto, dá mais liberdade para que os presos possam transitar dentro das suas dependências. São poucas as grades e cadeados vistos a partir do momento em que se cruza a porta de entrada. Uma praça, com plantas e ornamentos, recebe quem chega. Fora das grades, o verde. A colônia fica localizada em um terreno com cerca de 200 hectares, aproveitado em quase toda sua extensão para abrigar as dependências internas e as hortas que abastecem não só a própria unidade, mas também boa parte do sistema prisional piauiense.
No mesmo chão de onde se erguem as grades que aprisionam, se erguem plantas que dão frutos. Um lembrete de que nem tudo precisa ser só na base do ferro e do concreto. Ali também podem se construir vidas. Muito embora a clausura ainda seja a palavra de ordem, os internos que vivem na Major César tentam dia após dia tirar dela algo de bom e planejar um futuro melhor ou ao menos mais justo do que o passado que os levaram até ali.
“O dia aqui não é muito bom, né? Porque é um lugar em que nós nos encontramos privados da nossa liberdade. Precisamos de oportunidade, de serviço, de cursos. Falta um ano para eu sair, mas quando eu sair daqui tenho muitos planos. Quero montar um salão de barbearia. Não tenho filhos ainda, mas pretendo construir a minha família e seguir nesse ramo”, afirma Carlos Augusto, esperançoso.
Outro que também pensa em abrir o próprio negócio é Fábio Lopes de Assis. Preso em 2019, ele está na Major César há um ano cumprindo regime semiaberto e faz um curso de capacitação em refrigeração residencial. Junto com outros internos, Fábio aprende sobre instalação e manutenção de condicionadores de ar e sonha em montar a própria empresa quando ganhar a condicional, o que deve acontecer em fevereiro do ano que vem. Assim como a participação nas obras da colônia, o curso de refrigeração também leva à remição da pena. Mas, para Fábio, o interesse maior não é nem a redução do tempo preso em si.
“Eu gosto de aprender, me interesso é pela aprendizagem e espero sair daqui e montar um negócio para mim. Sair dessa vida que eu estava levando, porque hoje eu vejo que ela não estava com nada”, afirma ele, que já fez outro curso dentro da Major César: o de informática básica. Fábio pensa em unir as duas coisas e investir na abertura de um MEI para recomeçar quando finalmente puder gozar de sua liberdade.
É justamente esta a ideia do projeto. Professor do curso de refrigeração na Major César, Francisco Lages explica que a ação é resultado de parceria entre o Governo do Estado, por meio da Secretaria de Assistência Social (SASC) com a empresa que ele representa. Concluindo as horas de curso, os internos receberão certificação para atuar no serviço formal e informal quando saírem.
“É importante para a etapa de ressocialização deles, porque eles já saem daqui com uma habilidade certificada, capacitados para o mercado de trabalho. Lá fora eles vão poder correr atrás de mais oportunidade, trabalharem em alguma empresa ou abrirem a própria empresa, quem sabe”, pontua o professor.
Mas nem só entre quatro paredes se faz ressocialização. Ela pode acontecer também ao ar livre, na sombra de uma árvore, por exemplo. Quem passa pela BR-343 com destino a Altos só entende que aquele lugar é uma penitenciária quando lê o nome na fachada. Quem vê rapidamente pensa que se trata de uma plantação. Pois bem: a Major César não recebe o nome de Colônia Agrícola à toa.
É na área externa aos pavilhões que parte dos apenados passa o dia trabalhando nas hortas. Fiscalizados por policiais penais, eles realizam o trabalho de capina, preparo da terra, plantio e colheita dos frutos. E na Major César se planta de tudo: de tomate a melancia. Tudo o que sai daquela terra é usado na alimentação dos 851 apenados e o que sobra – porque a produção não é pequena – ainda abastece outras unidades prisionais do Estado.
Quem tem orgulho e um certo ciúmes de suas hortaliças é Silvio Apolinário. Natural de São João do Piauí, ele cumpriu um bom tempo de pena em regime fechado e está na Major César encarregado de chefiar os serviços da horta. Ele conta que já trabalhava com o plantio antes de ser preso, o que lhe deu uma boa experiência na hora de assumir os serviços na Colônia Agrícola. Hoje, Silvio instrui 17 detentos no trato com a terra e quando fala sobre o resultado do que faz ali, não tem outra coisa que defina que não orgulho.
“Aqui a gente planta de tudo: cebola, alface, cebolinha, cheiro-verde, tomate, melancia. Tudo que você imaginar, a gente tem. E daqui vai para cozinha, para o CDA [Centro de Detenção de Altos], para o CDP [Centro de Detenção Provisória], para a Penitenciária Feminina. Todo dia a gente faz entrega. E sabe o que é bom? É que esse era meu trabalho lá fora. Aí eu vim ensinar aqui. É muito bom quando a gente vê assim uma chance de fazer uma coisa produtiva, sabe? E quando chega gente nova, animada, aí que é bom mesmo. Aqui é tudo com o apoio deles [direção da unidade] e com minhas ideias. É bom demais quando ouvem nossas ideias”, diz Silvio.
Mas até quem instrui precisa de instrução. Silvio Apolinário orienta 17 detentos no plantio na Major César, mas a experiência que teve ao longo de uma vida na roça também é complementada com os conhecimentos técnicos da equipe de instrutores de atividades agrícolas. Juvenal Meireles é um deles. Instrutor do curso de Manutenção de Roçadeiras, ele conta que o objetivo principal ali dentro é dar aos apenados as habilidades que permitam a eles se reabilitarem para a sociedade.
Oportunizar a eles terem uma renda é dá-los autonomia para reconstruir a vida fora do presídio. “Ajudar eles a ter uma forma de se manter lá fora é uma questão de sobrevivência. As pessoas valorizam trabalho honesto e é isso que a gente tenta passar para eles aqui. Ensinamos a eles técnicas de plantio, aplicação de defensores agrícolas, horta, operação e manutenção de tratores agrícolas. Profissionalizamos e ainda ajudamos eles viver melhor em sociedade”, explica Juvenal.
Aos internos são oferecidos ao menos três cursos na área agrícola, manutenção e operação de tratores, manutenção e operação de roçadeiras, e manutenção e operação de motosserras. O curso de roçadeira tem duração de 16 horas, o de motosserra, duas horas, e o de manutenção de tratores, 40 horas. Cumprida a carga horária, os internos recebem certificação para atuar na área rural, que é uma das que mais possui demanda, sobretudo na região Sul do Estado.
Segundo Reginaldo Torres, policial penal e diretor da Colônia Agrícola Major César de Oliveira, não há outra forma de inserir o apenado na sociedade se não for por meio da ressocialização. O tempo que eles passam na Major César vai além do simples cumprimento da pena: é qualificação, profissionalização e estudo. As instalações da unidade possuem, além dos pavilhões e da horta, uma fábrica de blocos de concreto usados na construção interna e em obras externas, oficina de metalurgia, salas de aula, sala de informática e biblioteca. A previsão é que em pouco tempo a Major César ganhe também uma oficina de panificação com uma padaria para atender interna e externamente.
“Não existe pena perpétua. Você não tira uma pessoa da sociedade para ela nunca mais voltar. Então se ela vai voltar um dia, ela precisa voltar uma pessoa melhor e mais qualificada do que quando ela foi isolada. É essa a lógica do cumprimento de pena e da ressocialização. Para que ela não volte ao crime, ela precisa saber fazer outras coisas para não ficar à mercê da criminalidade”, defende Torres.
Uma batalha mental
Quem nunca brincou de queimada na vida? O jogo é simples: as duas equipes são separadas por uma linha no chão. Uma equipe tenta acertar a outra com a bola. Quando alguém é “queimado”, vai para o “cemitério”. Aquela equipe que fica entre os adversários e indivíduo no “cemitério” tem que travar uma verdadeira luta para não ser queimado: as ameaças vêm de todos os lados. É uma verdadeira batalha pela sobrevivência e para sair daquela “zona de guerra”.
Por mais esdrúxula que possa parecer a comparação, a queimada se aplica bem ao sistema penitenciário brasileiro. As equipes rivais ficam separadas não por linhas, mas por pavilhões, por grades: de um lado, facção A. Do outro lado, facção B. No meio, resistindo às “boladas”, estão os presos chamados de “neutros” ou “sem facção”. É o mesmo lugar onde ficam aqueles que querem se engajar em alguma atividade e tentar a ressocialização. Do lado de fora, atuando como juízes neste “jogo” estão os policiais penais, tentando garantir que ninguém seja atingido.
A realidade dentro de uma unidade penal não é fácil: os policiais penais que atuam junto aos presos, a própria direção da unidade, e os próprios apenados que querem uma chance de se refazer na vida, todos eles travam uma espécie de batalha mental contra o que se chama de “ideia do crime”. Quem explica o diretor da Colônia Agrícola Major César, Reginaldo Torres.
“A organização criminosa é uma realidade dentro do sistema prisional brasileiro. No Piauí não é diferente. Mas o que a gente tenta é tirar o preso e trazê-lo justamente através da educação. Veja bem, as facções estão sempre querendo pegar aquelas pessoas para as quais o Estado não deu oportunidade. Então se o Estado der oportunidade, cada dia mais essas organizações vão ficar enfraquecidas. A gente tenta trazer o preso pelo trabalho e pela educação e assim evitar a reincidência criminal”, detalha.
A vigilância é redobrada dentro da Major César nas alas onde ficam apenados abertamente declarados faccionados. Aliás, perguntar se o indivíduo faz parte de alguma organização já é praxe no protocolo de recebimento pelo sistema. É uma questão de segurança: identificando de a qual facção o preso pertence evita que ele seja colocado junto do convívio de outros apenados sem facção ou de uma facção rival. Evita mortes, evita contratempos e evita um aumento da criminalidade.
Reginaldo Torres explica que dentro das facções é comum haver resistência com aqueles indivíduos que estão prestando algum tipo de serviço para se ressocializar.
“Eles não entendem que a pessoa trabalha porque quer aprender alguma coisa e melhorar de vida. Entendem que a pessoa está ali trabalhando para a polícia e não é assim. A pessoa trabalha porque quer, é por ela. A gente perguntar se quer. Se quiser, bora trabalhar. Se não, aí a gente não pode fazer nada a não ser mostrar para ela que não tem outro caminho mais simples”, discorre o diretor da Major César.
A chave para a porta de saída
O Brasil tinha 499.255 pessoas privadas de liberdade até o início de outubro de 2024. No Piauí são 4.792 pessoas cumprindo pena privativa da liberdade. Destas, 4.774 estão recolhidas em estabelecimentos prisionais e 18 estão cumprindo internação. São 1.177 presos provisórios e 3.584 cumprindo pena condenatória. A grande maioria, 4.651, são homens. Mas se quase 5 mil presos já é um número considerável, quando se observa a quantidade de gente que ainda deve ser presa no Piauí, a situação fica mais crítica: o Estado tem 4.958 mandados de prisão pendentes de cumprimento.
No momento, o Piauí conta com 17 unidades penitenciárias localizadas nas cidades de Altos, Bom Jesus, São Raimundo Nonato, Picos, Floriano, Campo Maior, Oeiras, Esperantina, Parnaíba e Teresina. Os dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) apontam que a grande maioria delas (84,2%) é unidade de regime fechado e que 88,2% está em condição de superlotação. Algumas delas, como a Penitenciária Irmão Guido, por exemplo, recebe presos de alta periculosidade. Outras, como a Colônia Agrícola Major César de Oliveira, abriga aqueles que já tiveram progressão de pena e hoje cumprem regime semiaberto.
Mas a despeito do tipo de regime, a finalidade das unidades prisionais vai além da ideia coletiva de espaço de cumprimento de pena. Derivada do latim praesidium, - termo que significa proteção, defesa, socorro, guarda, escolta – a palavra presídio está amplamente associada ao isolamento. Para a advogada Rosamaria Lemos, as prisões, enquanto sinônimo de encarceramento, servem também para resguardar o bem maior, que é a sociedade.
“Se você prende alguém, você limita a liberdade de alguém em benefício do bem maior: a sociedade. As leis foram feitas para preservar a convivência pacífica. Quando uma pessoa é presa, a intenção é que ela passe um tempo longe do convívio com as outras pessoas para que ela entenda o que fez e não faça mais. A ideia é evitar a reincidência e, claro, reintegrar o condenado à sociedade”, explica.
Para tanto, o Conselho Nacional de Justiça vem trabalhando junto aos tribunais de Justiça estaduais para que se avance nos projetos de ressocialização. Dentre eles, um que tem ganhado destaque é o Projeto Leitura Livre, que no Piauí é desenvolvido pelo TJPI junto às unidades prisionais. Através de um termo de cooperação técnica entre o Tribunal, a Secretaria de Justiça (Sejus) e a Secretaria de Educação (Seduc), é feito o acompanhamento com cada apenado para que ele possa remir sua pena através da leitura.
Conforme a Recomendação nº 44 do CNJ, o Projeto Leitura Livre permite a remição da pena pelo estudo, por meio da leitura de obras literárias, clássicas, científicas ou filosóficas. Pela norma, o apenado pode remir até quatro dias de sua pena para cada livro lido, sendo o limite de 12 obras por ano. Ou seja, o apenado pode reduzir anualmente 48 dias de sua pena caso de engaje no Projeto Leitura Livre.
Mas não é apenas ler. Ele deve apresentar uma resenha do livro após concluí-lo, ou então produzir um relatório que ateste a compreensão. O objetivo é estimular a educação e a reflexão crítica dentro dos presídios. No Piauí, o projeto é executado pelo Grupo de Monitoramento e Fiscalização (GMF), cujo coordenador é o juiz auxiliar da Vara de Execuções Penais, Marcus Klinger.
“Aqui no Piauí houve um crescimento significativo dos números de remição pela leitura através do Projeto Leitura Livre. Isso foi um grande avanço e fico feliz de estar acompanhando de perto. O Poder Judiciário tem papel fundamental no trabalho de ressocialização e de reeducação da pessoa privada de liberdade que foi condenada pela prática de um crime. O juiz da Execução Penal, na esfera da execução, fiscalização e cumprimento da pena, ao decidir pela remição, ao fomentar um projeto desse de leitura ou então um projeto cultural ou educacional, ele está fomentando a ressocialização e a reeducação daquela pessoa que está dentro do sistema prisional”, explica Marcus Klinger.
No Piauí, 10 das 17 unidades do sistema prisional possuem biblioteca para leitura. A facilidade no acesso aos livros levou a um aumento de 657,86% nas atividades de leitura dentro dos presídios, o que colocou o Piauí no lugar mais alto do pódio no Prêmio “A Saída é pela Leitura”. Para efeito de comparação, o número piauiense é mais que duas vezes superior ao segundo colocado no ranking, o Estado de Sergipe, que teve aumento de 256,83% nos índices de leitura no sistema prisional.
Dados da Diretoria de Humanização e Reintegração Social da Sejus dão uma ideia da amplitude do projeto. No segundo semestre de 2023, pelo menos 1.940 internos participaram do Leitura Livre. Já no primeiro semestre de 2024 este número mais de triplicou e chegou a 6.366 participantes de atividades de leitura. Ao todo, 8.306 apenados entraram na ação. Hoje, as unidades penais do Piauí possuem uma coordenação pedagógica exclusiva para o Projeto Leitura Livre.
“Tivemos que redimensionar o projeto em razão da adesão, ampliamos o número de educadores que acompanham os reeducandos e instituímos a figura do monitor”, explica Geusélia Cavalcante, diretora de Humanização e Reintegração Social da Sejus.
Mas e para aqueles apenados que não tiveram a chance de ter contato com os livros aqui fora e ainda não foram alfabetizados? Eles também podem participar do Projeto Leitura Livre a partir do momento em que se alfabetizam. E esse processo de alfabetização também acontece dentro dos presídios por meio de parceria com a Secretaria de Educação (Seduc-PI). A Seduc disponibiliza professores para ensinar os internos a ler e escrever.
Na Major César, os apenados possuem duas salas de aula onde aprendem disciplinas básicas como Português, Matemática, História e Geografia. O material usado na aprendizagem é todo cedido pelo próprio sistema e da mesma forma que acontece com o Projeto Leitura Livre, assistir às aulas também leva à remição da pena. Para cada quatro dias de aula frequentados, o apenado reduz um dia de permanência no presídio.
“A gente sabe que não é fácil, é um trabalho difícil. Mas o nosso papel é esse, é tentar ser agentes transformadores, pessoas que vão fazer uma diferença para aquelas que estão lá privadas de liberdade sem esquecer todo o sistema, toda a sociedade. Mas o Poder Judiciário tem um papel fundamental nisso tudo. E isso é feito aos poucos, são várias mãos, várias mentes, vários corações trabalhando. Não é uma só pessoa que consegue resolver isso da noite para o dia”, afirma o juiz Marcus Klinger.
Talvez a palavra-chave seja oportunidade. Uma chance de se reinserir e de ser reinserido na sociedade sem o estigma de ex-presidiário. Quando Carlos Augusto, Fábio Lopes, Silvio Apolinário e tantos outros saírem do sistema prisional, serão mais que ex-detentos ou ex-condenados. Eles poderão e, principalmente, querem ser chamados por outros nomes: o técnico em plantio agrícola, o pedreiro especialista em blocos de concreto, o técnico em refrigeração e informática.
Ou simplesmente o Carlos Augusto, o Fábio e o Silvio sem mais nada além de seus nomes para serem referidos. Sem mais nada para serem taxados. Sem serem um artigo no Código Penal. Sem serem só um número de inscrição penitenciária.
* Todos os nomes e imagens de apenados citados no texto foram obtidos com autorização dos próprios detentos e ex-detentos e anuência da Administração Penitenciária. Todas as entrevistas e imagens feitas dentro do presídio foram acompanhadas pela direção da unidade prisional.
* Para evitar a estigmatização, optamos por não citar os crimes pelos quais os apenados foram condenados.
Credits:
Por Maria Clara Estrêla e Nathalia Amaral