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Salto no Vazio Por Karina Montenegro

é um corpo-espaço atravessado, entrecruzado pelos elementos e saberesfazeres que compõem o universo em que ele se encontra. Carrega uma noção de tempo-espaço espiralado, curvilíneo, que aponta uma gnosis em um movimento de eterno retorno, não ao ponto inicial, mas às reminiscências de um passado sagrado, para o fortalecimento do presente e o deslumbramento do futuro.(RAMOS, 2017,p 297).

O conceito de museu universal ocidental está baseado na temporalidade e na espacialidade linear colonialista, a partir de um olhar centralizado que vem de cima para baixo, o conquistador buscou narrativas que demonstrassem seu poder e sua capacidade civilizatória. Através do acúmulo de objetos expostos em vitrines que, arrancados de suas origens, esvaziam-se de seus significados, tornaram-se troféus que legitimavam sua importância. Há décadas que este modelo vem sendo contestado e questionado, pois as memórias que ele preserva são farsas. O mundo contemporâneo já compreendeu que seu conceito foi estruturado em um campo de batalhas que culminaram com as desigualdades globais. Uma das funções primordiais do museu é entender como o mundo ao nosso redor funciona e para isso é necessário dar voz à várias perspectivas construindo uma aliança entre os povos oprimidos que lutam por uma nova ordem do mundo.

A Ilha da Reunião é um departamento ultramarino francês insular, localizado no Oceano Índico e a leste de Madagascar, é um dos menores países da África, formado por uma única ilha e não tem fronteira direta com nenhum país vizinhos. E apesar da máxima autoridade da ilha ser um Prefeito nomeado pela França, apenas 25% de sua população é de origem francesa, enquanto o resto da população é formada, em sua maioria, por uma mistura de brancos, negros e sul asiáticos, seguidos de Tâmil, Chineses e diferentes povos asiáticos. Apesar da língua oficial ser o francês, a língua mais falada é o crioulo.

Os portugueses foram os primeiros a passar pela ilha da Reunião em 1507, em uma breve passagem que nem deixou vestígios. Após 100 anos, por volta do ano 1642, os franceses tomaram posse da ilha, que até então, permanecia intocada sem população original. Umas das primeiras descrições da ilha feitas pelos francesas foi de um lugar repleto de montanhas e florestas impenetráveis, água fresca peixes, tartarugas, jabutis, vacas selvagens, cabras e porcos. Devido ao clima tropical e à fertilidade do solo vulcânico presentes, foi transformada em uma colônia agrícola.

Praticamente toda a população da ilha foi trazida pelos franceses nos séculos XVII e XVIII, particularmente da Índia, África, Malásia e China, tecendo uma rica mistura de culturas e raças que sustenta a identidade deste povo. Os imigrantes não europeus eram em sua maior parte escravos que trabalhavam nas lavouras de café e açúcar, enquanto os franceses eram os donos das terras. Sua história foi marcada por lutas antiescravagistas e comunidades quilombolas que conseguiram se beneficiaram da geografia montanhosa para se proteger. Apesar da escravidão ter sido abolida no ano de 1848, a ilha ainda apresenta grandes desigualdades raciais e sociais marcadas por um alto índice de analfabetismo, e uma maioria vivendo abaixo da linha da pobreza.

No ano de 2000, um conselho regional, anticolonial, a Maison des Civilizations e de l’unité réunionnaise (MCUR – Cada das Civilizações e da unidade da Ilha de Reunião), foi formado com o intuito de desenvolver o projeto de um museu que contasse a história da população da ilha, suas culturas e línguas, sob um olhar que testemunharia a vida de escravizados, oprimidos, migrantes, marginalizados e invisíveis, transformando a ilha em um agente da história. Devido à riqueza de sua mistura e pluralidade cultural, havia um desejo de que as particularidades desta pequena ilha alcançassem novos voos.

Além de proporem a criação de um “pós-museu” decolonial, o grupo surgiu como com algo extremamente inovador, visto que partia da ideia de um museu “sem objetos”, ou seja, sem materialidade. Ao eliminar o acúmulo de objetos no espaço expositivo, seria possível se apropriar das memórias e da narrativa desta cultura, desconstruindo assim o olhar colonizador francês como o centro da história da ilha. Toda a materialidade remanescente encontrada na ilha estava associada à objetos que testemunharam a invisibilidade deste povo que foi escravizado e marginalizado, ou por seu caráter violento ou por desprezo à singularidade dos indivíduos. Em detrimento da cultura material colonial, propunha-se a desobjetificação de seus habitantes, a partir da ausência como possível afirmação da presença. Essa ausência, criaria um vazio expondo um abandono e uma invisibilidade destes homens, mulheres e crianças, apesar de serem a maioria da população. Paradoxalmente possibilitaria a criação de novas perspectivas, libertando a história da ilha de sua temporalidade colonial.

Museus são locais de preservação da memória que apresentam os bens culturais ali guardados e expostos de forma a se contar uma história. A elaboração dessa narrativa histórica apresenta um discurso sempre repleto de presenças e ausências, de lembranças e esquecimentos. Essas lembranças e esquecimentos, inerentes ao processo de escrita da história, resultam em um processo de construção que também envolve outras forças, como, por exemplo, o poder. O poder é semeador e promotor de memórias e esquecimentos. Assim, os museus não apenas apresentam e dizem coisas do passado, mas também representam formas de ver o mundo, ao legitimar, naturalizar e ordenar culturas e identidades. Os museus se transformam com o tempo e suas narrativas precisam ser continuamente revistas, seus objetos revisitados e sua linguagem expositiva constantemente atualizada.

No final do século XVIII, foram criados na Europa muitos museus públicos com o nítido papel de contribuir para a construção de identidades nacionais, elegendo e legitimando suas próprias culturas e história. A Europa vivia uma disputa acirrada por colonização de terras e povos ultramarinos, principalmente nas Américas e na África, de onde roubavam e saqueavam objetos como peças de ouro, prata e metais preciosos, carcaças de bichos exóticos jamais vistos, artesanato e demais artefatos que eram expostos nestes espaços, como formas de legitimação de poder. Criaram assim, uma narrativa museológica que relata a grandeza de suas nações, subjugando e silenciando os povos conquistados.

A história dos oprimidos é extemporânea, não reside nos objetos, pois é intangível, é mantida pela oralidade, vocábulos, textos, música. E os escravizados trazem consigo histórias, culturas, sociedade, línguas faladas, que trazem de suas vivências em seus locais de origem. O resgate e ampliação destas experiências estava no cerne do projeto do museu proposto pelo MCUR. Ao invés de preservar culturas mortas que querem demonstrar a verdade assertivamente, visava ser um lugar transformador, questionador, com espaço para o debate de diferentes alternativas, onde a história pudesse ser dinâmica e viva.

Nesse sentido, o espectador participaria da construção de diferentes narrativas, trazendo outras possibilidades e olhares, circulando diferentes ideias. O museu seria preenchido com sons, imagens, palavras, poemas, teatros, narrativas, literatura oral, através de instalações, técnicas multimídia, bricolagem e reciclagem.

A língua crioula teria um papel muito importante neste processo, onde seriam retomados conhecimentos ancestrais que promovem uma (re)existência no espaço e no tempora através de diferentes formas de expressão, transformando esta ancestralidade em experiências que revelam uma (re)existência e uma coexistência circundadas por elementos ancestrais sagrados e que não podem ser fechados em uma lógica de representação do já vivido, uma vez que sempre, dentro de fluxos e influxos, vão existir, redimensionados por um agora que é uma face do (re)existir.

Haveria silêncio e meditação, só o espaço vazio nos traz a possibilidade de criar e acessar realidades polimorfas, dinâmicas, múltiplas identidades, como a história dos quilombolas e seus itinerários percorridos, ritos, práticas culinárias, ingredientes usados em receitas. O vazio representa a ideia de algo não mundano, no vazio a pessoa passa a se concentrar em suas próprias sensações, na realidade e não na representação, desta forma pode-se mergulhar simbolicamente no inexplorado, admitindo um passado desconhecido.

A necessidade de se olhar e resgatar as próprias histórias e raízes surge como uma nova força que vem emergindo exponencialmente nos últimos anos. O pensamento decolonial em ascensão põe em xeque a hegemonia eurocêntrica epistêmica, política e cultural. Os modelos eurocêntricos já se mostraram incapazes de dar conta da complexidade da história e da cultura de diversos povos, que colonizados e escravizados, sempre estiveram à margem. O museu como lugar de memória coletiva e ferramenta de formação sócio histórica tem um papel central neste processo pois é um dos pilares da narrativa construída pelos colonizadores. Seu surgimento se deu como instituição colonial baseada em furto e saques de objetos de povos subjugados como símbolo de poder financiado pelo tráfico de escravos e pela exploração. Necessitamos de novos meios que abracem a diversidade e a pluralidade de olhares, de espaços e tempos que valorizem a fragilidade humana em detrimento da monumentalidade. O museu sem objetos da Ilha Reunião não vai ser construído por hora, porém, suas sementes já foram criadas e quem sabe que ventos estão a soprar.

Referências:

https://35.bienal.org.br/o-museu-sem-objetos/

https://35.bienal.org.br/agenda/mesa-francoise-verges-em-conversa-com-a-equipe-de-educacao-da-bienal/

https://select.art.br/agenda/francoise-verges-no-brasil/

https://issuu.com/bienal/docs/35bsp-publicacao_educativa-online