Humanos acima de tudo e à margem de todos Por Maria Clara Estrêla e Nathalia Amaral

Uma mochila, um celular, algumas peças de roupa e um par de tênis. Em 10 anos vivendo na rua, isso é tudo que o pintor Wilson Bernardo Batista, de 63 anos, conseguiu acumular. Em 2014, quando saiu de casa, Wilson tinha só a roupa do corpo. O vício em entorpecentes, como cocaína, rohypnol e merla (pasta base de coca da qual se origina a cocaína e o crack), fez com que o ex-técnico em informática fosse expulso de casa pela família. Com uma vida confortável, com carro e casa própria, quatro filhos e um emprego estável, Wilson se tornou dependente químico e viu tudo o que possuía desmoronar diante dos seus próprios olhos devido ao vício.

Assista abaixo a história de Wilson Bernardo Batista:

Hoje, tudo o que possui consegue ser levado nas costas. No rosto e nas mãos, as marcas do sofrimento de quem está há muito tempo sem ter para onde ir. O banho, o alimento, o sono, tudo é improvisado embaixo da copa das árvores na Praça das Violetas, no bairro São Cristóvão, zona Leste de Teresina. Com outras cinco pessoas em situação de rua, Wilson, hoje, luta para conseguir ter de volta um teto em que se abrigar.

As memórias da vida antes da rua ainda são muito vivas para Wilson Bernardo. (Foto: Jailson Soares/O Dia)

Mesmo com tanta dificuldade para conseguir sobreviver nas ruas, Wilson carrega consigo a simpatia e um sorriso para quem quiser ter com ele dois minutos de prosa. Mas, basta perguntar sobre a sua história de vida, que a alegria se transforma em pesar. As lembranças de tudo o que tinha ainda são muito vivas e, mais ainda, o luto por ter perdido ainda em vida a família que tanto batalhou para construir.

"Eu usei todo tipo de droga que a senhora possa imaginar. Isso foi o que me levou para a rua. Eu perdi meu carro, minha esposa não aguentou mais e me dispensou. Eu tinha uma casa bonita, com quatro suítes e um galpão bem grande que cabe 11 carros, aí a mulher não aguentou mais e a gente teve que separar. Eu saí de casa de bermuda, tênis e uma camiseta. Minha ex-esposa disse que não me quer mais nem pintado de ouro", relembra Wilson.

Wilson Bernardo saiu de casa apenas com a roupa do corpo. (Foto: Jailson Soares/O Dia)

Wilson Bernardo trabalhou com processamento de dados em grandes empresas públicas, bancos e até ministérios do governo federal, como o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços e o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Foi isso que o oportunizou a construir um patrimônio confortável ao longo da vida e garantir o estudo dos quatro filhos. Contudo, nem mesmo a vasta experiência é suficiente para fazer com que ele consiga ser reinserido no mercado de trabalho. A idade avançada e o preconceito são alguns dos fatores que fazem com que as portas estejam sempre fechadas para pessoas como ele.

“Eu tenho o segundo grau completo, mas tenho uma bagagem e isso foi o suficiente para conseguir me ajeitar na vida. Hoje, eu não consigo mais trabalho formal, pela idade elevada nenhuma empresa vai me contratar. Sou pintor profissional e fico fazendo uns bicos de pintura, de consertar telha, jardinagem, e a maior parte do tempo, quando não aparece nada, é rua mesmo, não tem como”, lamenta.

Sem emprego formal, Wilson precisa viver na rua. Foto: Jailson Soares/O Dia)

Sem oportunidade, a única alternativa é ficar na rua. Na Praça das Violetas, Wilson e outras cinco pessoas dividem o espaço e a rotina, em busca de alimentos e de pequenos bicos pelas redondezas para conseguir algum dinheiro. Quando a sorte não está ao seu favor, a saída é pedir.

“Nós somos irmãos, um protege o outro. A gente recebe uma cesta básica e cozinha lá mesmo, no nosso local. A gente se alimenta todo dia bem. A gente toma café da manhã, almoça, tem a merenda, tem a janta, tem a manga, porque lá tem um monte de pé de manga. Ontem mesmo eu ganhei um dinheiro, olha aqui uma notinha de R$ 50. Ontem eu limpei o telhado de um cidadão e ele me dá R$ 120 por dia. Eu vou me virando. Quando a gente não consegue, vai nos restaurantes e pede”, afirma.

Contudo, nem mesmo todo o sofrimento por estar em situação de rua consegue apagar a sensação de abandono que sente por não ter mais contato com a sua família. Vivendo um dia de cada vez, o sonho dele agora é conseguir se cadastrar no Programa Bolsa Família para alugar um cômodo onde possa reconstruir a vida.

Meu filho é fuzileiro, outro é professor, um é radiologista e uma enfermeira. Formei três filhos. A sensação que eu sinto é de abandono, né? Porque você faz tudo e na hora de ser retribuído, não tem ninguém. Meus filhos não me procuram. Eu vou vivendo um dia de cada vez. Quero pegar o Bolsa Família, alugar um barraco e sair da rua. Eu não aguento mais a rua. Em Brasília, onde eu morava, tinha um pessoal que gostava de tocar fogo nas pessoas. Um jogava o álcool e o outro acendia o fogo. Você não dorme, você passa a noite, porque é perigoso”, destaca.

Cidadãos invisíveis

Wilson não é o único. Assim como ele, existem outras 281 mil pessoas em situação de rua no Brasil. Os dados, divulgados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), são referentes ao ano de 2022 e mostram o abismo social em que essa população se encontra no nosso país. Em uma década, o número de pessoas em situação de rua aumentou 211 vezes. Somente nos dois primeiros meses de 2024, mais 10 mil pessoas entraram para essa estatística. E os fatores que levam a isso são inúmeros, desde a falta de emprego, à dependência química e, principalmente, à desigualdade social.

O sociólogo Germano Lúcio explica que, na última década, especialmente nos últimos sete anos, a redução da participação do Estado no desenvolvimento e manutenção de políticas públicas assistencialistas contribuíram para o aumento dos problemas sociais, culminando no aumento da população em situação de rua em todo o país.

Falta de políticas públicas assistencialistas resultam no aumento da população de rua no Brasil. (Foto: Jailson Soares/O Dia)

“O resultado desse combo de adversidades vai gerando outros problemas que agravam a desigualdade social e levam à saída das pessoas do mercado de trabalho. Aumenta o desemprego, aumenta a situação de vulnerabilidade e essas pessoas começam a entrar em um ciclo vicioso perverso, como consumo de álcool, consumo de drogas, desintegração e desestruturação familiar. Isso acaba impelindo essas pessoas a perderem o local de habitação e terem que conviver e viver na rua”, explica.

“Marginais”, a definição, conforme o vocabulário, são aquelas pessoas que vivem à margem da sociedade, desconsiderando a lei e a moral. Delinquentes, fora da lei, criminosos. Na prática, no entanto, os marginais ou marginalizados, são aquelas pessoas que estão à margem de tudo e, por isso, não tem acesso às condições básicas de sobrevivência.

Sem ter para onde ir, pessoas em situação de rua ocupam espaços públicos. (Foto: Gabriel Paulino)
“Como estão totalmente à margem das oportunidades de trabalho, à margem das condições dignas de vida, de acesso à saúde, de acesso à moradia, de acesso à alimentação, elas vão para a rua para começar a pedir. Outras, provavelmente em uma situação de desespero, cometem violências, crimes, assaltos, furtos. Esse é o resultado da ausência do Estado que aconteceu nos últimos sete anos. Estamos hoje em uma situação combalida na saúde, na educação, que vai gerando um efeito dominó em outras esferas. Isso é a ponta do iceberg de um problema que é muito mais grave e muito maior”, aponta o sociólogo Germano Lúcio.

Nas grandes cidades, esse problema se potencializa. Basta dar uma volta por Teresina para se deparar com lonas e barracas improvisadas abrigando famílias inteiras, pessoas dormindo embaixo de pontes, viadutos ou em bancos de praças. Em outros grandes centros, como Fortaleza, São Paulo, Rio de Janeiro e demais capitais, o cenário se repete. De acordo com o sociólogo, este é um retrato de um fluxo migratório constante, em que pessoas do interior, ou de outros estados e países, migram para os grandes centros em busca de novas oportunidades. Isso se agrava ainda mais pela falta de moradias populares e, mais uma vez, demonstra a falha do Estado em cumprir o seu papel.

A saída, para Germano Lúcio, é voltar a investir em programas assistencialistas, voltados para pessoas de baixa renda e em situação de extrema vulnerabilidade, como é o caso das pessoas em situação de rua. Afinal, quando se fala em política assistencialista, não se fala apenas em programas de transferência de renda, mas também de acesso a emprego, a moradia, alimentação e outras políticas públicas amplas que visam, justamente, evitar que o cenário se agrave.

“O problema é estrutural. É preciso mapear toda essa população e, além desse mapeamento, verificar: quem é essa pessoa? Ela tem história? Qual é a sua história? O que se pode fazer para tirá-la dessa situação? É preciso iniciar com redução de danos, com uma ação integrada instituída como política pública direcionada e desenvolver um trabalho direcionado para o combate a esse problema, não pode ser uma política ou uma ação apenas, tem que ser uma coisa pensada, estruturada, diagnosticada, para resolver o problema na sua raiz”, destaca o sociólogo Germano Lúcio.

Como você quer ser tratado?

Quando exposto ao esquecimento e ao abandono, o ser humano acaba reduzido às sombras de sua própria existência, sendo apagado dos olhos da sociedade. Uma sociedade que empurra aos cantos mais escuros os sujeitos que, pelo simples fato de estarem ali, parecem incomodar. A pergunta principal é: desde quando existir incomoda? Há um jeito de tratar com humanidade aqueles que não são sequer vistos como seres humanos pelo restante das pessoas?

“Tratar com humanidade” é uma expressão delicada. Ao menos é para a promotora de Justiça Myrian Lago. Titular da 49ª Promotoria de Teresina, especializada na matéria dos Direitos Humanos, ela questiona se existe outra forma de se dirigir ao ser humano que não de forma humanizada. O emprego deliberado do termo, para ela, reflete o quanto a sociedade vive um momento de total desumanidade. Hoje em dia, tratar alguém de forma humana é lhe oferecer o básico para viver. É fazer por ela o mínimo que se espera quando se trata de um semelhante.

Para a promotora Myrian Lago, a sociedade vive um momento de total desumanidade. (Foto: Jailson Soares/O Dia)

“Como é que você trata a pessoa humana? É de forma humana. Não tem outra. A outra é aquela que a gente repugna e que a própria lei não permite. O tratamento do ser humano tem que ser humano”, pontua a representante do Ministério Público do Piauí. Na grande roda da sociedade, em que quem está por cima quer permanecer por cima e quem está lá embaixo só quer uma chance de poder mudar de posição, há aqueles que incomodam e que, por isso, são propositalmente empurrados para fora de qualquer ciclo de convivência.

“É um mau-cheiro danado, ficam tomando banho no meio da gente. Essa pracinha era tão bonita e agora é tomada por esse povo”. Esta frase foi dita por uma senhora, que preferiu não se identificar, enquanto aguardava um ônibus numa parada no cruzamento das avenidas Jóquei Clube com Nossa Senhora de Fátima, na zona Leste de Teresina. Considerada uma das áreas mais nobres da capital piauiense, há ali um espaço que destoa e desafia esta dita “nobreza”.

Na esquina do cruzamento das avenidas há uma pracinha, semelhante àquela de Wilson. Um espaço coberto de árvores que, em realidade, nunca chegou a ser de fato usado pela população que passa por ali diariamente, mas que hoje é ocupado por varais de roupas, lonas, barracas construídas com papelões e camas improvisadas com lençóis no chão. Não é raro passar por ali pela manhã e se deparar com alguém se lavando com uma garrafa pet ou fazendo alguma refeição na calçada.

Para eles, mais um dia normal. Mas para quem passa por ali, a normalidade é a última coisa que se sente. Tem quem olhe com medo e fique longe. Tem quem segure bem a bolsa por receio de sabe-se lá o quê. Tem quem nem fique ali perto aguardando o coletivo porque se incomoda com o simples existir do outro. A realidade é que as pessoas em situação de rua que povoam aquele trecho da Nossa Senhora de Fátima não estão nem aí para quem passa. O incômodo, como sempre, está nos olhos de quem vê.

E para quem diz que o poder público deve tirá-los do espaço público, o órgão fiscalizador do governo explica que não é bem assim. O Ministério Público Estadual diz que política para tratar as pessoas em situação de rua não deve ser compulsória, mas, sim, de acolhimento. O espaço da rua muitas vezes é um espaço de ganho de vida, um espaço de trabalho.

“Muitas pessoas em situação de rua fazem da rua o local de tudo na sua vida. Não tem aquela rotina dita normal que as pessoas têm. Que vão para casa e saem de casa para o trabalho, e voltam para casa. A rua congrega todos esses espaços. A gente compreende que existem algumas situações em que há, por exemplo, depredação do espaço público e isso não é o que se apoia nem é o que se defende. Mas por outro lado não é aceitável que a pessoa seja retirada apenas porque é uma pessoa que não tem onde morar. A pessoa em situação de rua não é só alguém que não tem onde morar. É alguém que não tem mais vínculo com nenhuma outra pessoa. E existem pessoas que realmente não vão sair dessa situação”, discorre Myriam Lago.

Milhares de pessoas em situação de rua não tem uma casa para onde voltar. (Foto: Jailson Soares/O Dia)

O papel do Ministério Público, nestes casos, não é só acompanhar as políticas de acolhimento, mas também fazer as pessoas entenderem que quem só está na rua lavando um carro, sendo um flanelinha, fazendo pequenos bicos ou fazendo nada, não está cometendo nenhum crime e não representa por si só um perigo para a sociedade. O espaço público de uma praça, por exemplo, é o espaço de todas as pessoas da cidade, não especificamente daquelas que atendem a um padrão de vida único que, em realidade, nem é o único. Existem várias formas de vivência.

Acolher e cuidar

Em Teresina, há o Sistema Especializado em Abordagem Social (SEAS), vinculado à Secretaria Municipal de Assistência Social e Políticas Integradas (Semcaspi). O grupo é formado por uma equipe multidisciplinar capacitada para identificar e fazer um primeiro contato com as pessoas em situação de rua. Neste primeiro contato são trabalhadas questões como a inclusão na rede de acolhimento, criação do Cadastro Único para recebimento de algum benefício e a prestação de serviços especializados de saúde e assistência social.

As equipes tentam primeiramente entender o que levou a pessoa àquela condição de extrema vulnerabilidade. Na maioria dos casos, a pessoa está em situação de rua por conta de problemas com as drogas. Há ainda os que apresentam algum problema de saúde mental. Em geral, são sempre questões que causam um afastamento ou uma repulsa da sociedade. A paradoxo reside aí: a sociedade põe à margem sendo que cabe a ela mesma acolher.

A promotora Myriam Lago costuma dizer que as pessoas em situação de rua estão em uma situação tão complexa e delicada em um grau de vulnerabilidade tão alto que só o poder público não resolve.

“Por sua vontade própria, o Ministério Público, a Defensoria Pública, a Justiça, eles não vão dar conta dessa demanda. É uma demanda que toda a sociedade precisa se apropriar, Mas o que a gente vê na prática não é isso. A gente vê que essas pessoas são invisibilizadas e quando não ficam invisíveis, passa a ser incômodas e muita gente pede para lhes tirarem da rua. Ao invés de ter empatia ou de buscar um acolhimento, há até certa repugnância porque são pessoas consideradas não produtivas, que não têm nada a oferecer à sociedade. Eles que não têm nada a oferecer ou a sociedade que não sabe aproveitar o que eles podem oferecer?”, questiona a promotora.

Ter a oferecer, Gilberto Soares, 38 anos, tem. Ele se encontra em situação de rua e costuma ficar pelas avenidas da zona Leste próximo a restaurantes e locais de intenso movimento para olhar carros. Gilberto saiu de casa há três meses por conta de conflitos familiares que ele prefere não detalhar e diz que na rua encontra seu meio de sustento e, no momento, sua moradia.

“Eu fico parte do meu dia olhando os carros, fazendo uns bicos de flanelinha e tem um pessoal que é até generoso. Quando dá a hora de comer, tem um pessoal de uns restaurantes que ajuda ou então eu vou lá no restaurante do Centro e como [o Restaurante Popular de Teresina]. Depois volto e fico por aqui. Descanso um pouco e aí vou de novo fazer meus bicos”, detalha a rotina. Quando questionado sobre o preconceito, ele desconversa. “As pessoas acham que a gente recebe dinheiro pra gastar com besteira, mas nem é. Tem quem se sustente assim. Eu não recebo nenhum benefício para não fazer nada como acham. Estou aqui porque estou. Não deu em casa, aí saí e vim para a rua. Aqui é a casa agora”, finaliza.

Zeros à esquerda e à direita

Você sabe quantas pessoas em situação de rua há em sua cidade? Em seu bairro? Este é um número que nem o IBGE sabe. Além dos números gerais do IPEA, pessoas em situação de rua não são contabilizadas no Censo Demográfico Brasileiro porque não possuem uma moradia. Só conta para as tabelas e planilhas do Instituto Brasileiro de Estatística aquela parcela da população que tem um teto para chamar de seu. Quem mora sob “o telhado do mundo inteiro”, como diz o poeta ao se referir ao céu, não aparece nos números.

É como uma sequência infinita de zeros. Zeros à esquerda, zeros à direita, zeros para todo lado. E esses zeros tendem a aumentar mais com o processo de globalização e crescimento das grandes cidades. É que à medida que os centros urbanos se espraiam, aumenta a desigualdade social. E sabe quem é a filha primogênita da desigualdade? A ampliação da população em situação de rua.

Pessoas em situação de rua não são contabilizadas no Censo Demográfico Brasileiro. (Foto: Jailson Soares/O Dia)

O Brasil é um país rico em programas sociais como o Bolsa Família, o BPC e os benefícios eventuais de assistência social, mas todos eles são frutos da desigualdade que sempre foi a marca da sociedade brasileira. Depois da pandemia, então, esse contexto se acentuou vezes mil.

Em final de 2020 e início de 2021, quando o mundo vivia o caos da pandemia de covid-19, a Prefeitura de Teresina realizou um diagnóstico da população em situação de rua para ter uma ideia de como proceder com a vacinação, já que esta parcela era considerada público prioritário para a imunização. À época havia em torno de 600 a 650 pessoas em situação de rua vivendo na capital. Depois disso, o número, claro aumentou, porque esta é a tendência a nível local, regional e nacional.

Mas há os chamados trecheiros, que são as pessoas em situação de rua conhecidas popularmente como andarilhos. Eles um dia amanhecem aqui e no dia seguinte estão em outra cidade ou indo para outro estado. Por isso o número da população em situação de rua é sempre flutuante para mais ou para menos. Isso dificulta um pouco, inclusive, a promoção de políticas públicas para este público.

Trecheiros se deslocam entre cidades, sem rumo definido. (Foto: Gabriel Paulino)

Cabe ao Sistema Único de Assistência Social (SUAS) fazer o acompanhamento permanente todos os meses através do número de atendimentos feitos na rede. Por exemplo, em setembro, a Casa do Caminho, em Teresina, que promove políticas assistencialistas de alta complexidade a pessoas em situação de rua, com idades entre 18 e 59 anos, fez 56 atendimentos. Já o Centro de Valorização da População em Situação de Rua, que atende em média complexidade esta população, fez 86 atendimentos.

Localizadas no Centro de Teresina, a Casa do Caminho e o Centro de Valorização da População em Situação de Rua (CVPRS) oferecem serviços de apoio à população em situação de rua da capital. No Centro Pop, as pessoas podem guardar seus pertences, tomar banho, solicitar segunda via de documentos, entrar no Cadastro Único e passar por acompanhamento psicossocial. Já na Casa do Caminho, além do atendimento psicossocial, da alimentação e assistência social, os acolhidos podem dormir caso queiram. Lá, o prazo de acolhimento é de, no máximo, três meses. A depender da complexidade do caso, pode ser prorrogado por mais três.

A Casa do Caminho e o Centro de Valorização da População em Situação de Rua (CVPRS) oferecem serviços de apoio à população em situação de rua. (Foto: Jailson Soares/O Dia)

Aline Teixeira, diretora do SUAS, explica que o primeiro trabalho feito no acolhimento é a criação de um vínculo com a pessoa em situação de rua. É preciso, antes de tudo, vencer o descrédito que muitos têm no serviço. “Muitos deles não acreditam no que fazemos, já não têm mais esperança de mudar de vida e isso dificulta a aproximação, o contato e o atendimento. Por isso, é tão importante você ter um lugar acolhedor onde eles possam entrar, onde a equipe técnica compreenda suas potencialidades e suas dificuldades também”, diz.

No caso daqueles que buscam atendimento na Casa do Caminho, a situação é um pouco mais complexa. Muitos possuem problemas com álcool e/ou drogas, o que torna o acolhimento no espaço mais difícil. É que não se pode entrar na Casa portando qualquer tipo de substância lícita ou ilícita e há quem tenham dificuldade de entender isso. Aline Teixeira explica que esta restrição se dá por motivos óbvios: a Casa do Caminho é um espaço coletivo sob responsabilidade do Estado e esse impedimento visa garantir a segurança de quem está lá dentro, tanto acolhidos quanto funcionários.

Na Casa do Caminho, as pessoas em situação de rua podem ficar por até três meses. (Foto: Jailson Soares/O Dia)

Ela volta a frisar um ponto bastante mencionado pelo Ministério Público, que é o estigma que as pessoas em situação de rua carregam aos olhos do restante da sociedade. As pessoas chegam inclusive a cobrar da própria Prefeitura a retirada de grupos vulneráveis das ruas alegando ocupação indevida do espaço urbano coletivo. Aline explica que as pessoas em situação de vulnerabilidade são cidadãos e cidadãs independente de sua situação.

“Essa política higienista já passou. Nós tivemos no Brasil um tempo em que era só chegar, tirar e botar essas pessoas em outro lugar. Hoje não. Hoje a gente trabalha com um tipo mais eficiente de abordagem, mas a sociedade não compreende, cobra da política de assistência social medidas muito compulsórias”, discorre Aline.

Aline Teixeira explica como é o acolhimento a pessoas em situação de rua nos equipamentos da Prefeitura de Teresina. (Foto: Jailson Soares/O Dia)

Pode até ser que a retirada desta população das ruas seja alcançada, mas não na base da força. Conforme explica Rafael Quadros, gerente da Casa do Caminho, a vitória da articulação com a rede de atenção familiar é quando as pessoas atendidas voltam para suas famílias. Ele frisa que a instituição é uma casa de passagem para a qual a pessoa vai, tem acesso ao atendimento e quando sai, não é desligada da rede. As equipes continuam mantendo diálogo com os CRAS e os CREAS para saber como o indivíduo está, se continua com a documentação que lhe foi dada e para saber se ele não está desamparado.

O Ministério Público também faz parte desse monitoramento. O órgão funciona de portas abertas para pessoas que vivem em situação de rua. Em necessidade de acolhimento, a pessoa pode se dirigir até o MP e pedir para conversar com algum representante que possa lhe fazer um acolhimento inicial e lhe instruir sobre como ser inserido na rede. O Ministério Público também atua na outra ponta: garantindo que a população em situação de rua em Teresina tenha acesso àquilo que lhe é de direito.

Mas na maior parte dos casos, é a própria rede que identifica um indivíduo em vulnerabilidade e aciona o MP. A grande maioria das demandas do órgão são coletivas e não individuais. A promotora Myrian Lago explica que essa é a grande obrigação do ente ministerial. “É nas demandas coletivas que você atinge realmente toda a população indistintamente. Desde 2016 a gente começou a fazer as inspeções e conseguimos fazer muita coisa. Ainda não é suficiente, mas é algo que é constante”, pontua a promotora.

Na rede de atendimento hoje, todos os CREAS, o Centro de Valorização da População em Situação de Rua (CVPRS) e o SEAS possuem carros para ajudar a fazer a busca ativa. Eles também possuem telefone institucional. A Casa do Caminho, assim como o CVPRS, agora fornece cinco refeições por dia, o próprio Consultório de Rua passou a trabalhar próximo ao CVPRS. São pequenos passos que permitem uma boa evolução mais à frente, como afirma Myrian Lago.

Promotora explica que as demandas atendidas pelo MPPI são, em sua grande maioria, coletivas. (Foto: Jailson Soares/O Dia)

A promotora, no entanto, reforça: não basta só o poder público e os entes garantidores de direitos atuarem para a dar o mínimo de humanidade a quem mais precisa. A solidariedade nessas horas também é importante. Associações vinculadas a agremiações religiosas ou não, vinculadas ou não ao setor privado, podem contribuir para tentar ajudar. Mas ajudar não significa “dar fim ao problema”. A saída não é exatamente tirar a população em situação de rua da rua. É permitir que ela tenha uma vida melhor dentro da perspectiva dela e não daquilo imposto por quem acha que o que vive é “normal”.

Credits:

Por Maria Clara Estrêla e Nathalia Amaral