ENTRE ARTES EU CAMINHO ENTRE OBRAS E RELAÇÕES AINDA ENCONTRO ESPAÇO PARA DESCOBERTAS

Por Ana Valadares

Em julho de 2023 eu presenciei uma confusão no mundo da arte. De um lado o Casal Arnolfini me cercava com seu detalhismo do renascimento, do outro eu era coberta pela sombra das obras de Caravaggio, embaixo eram as flores dos campos de Monet que me perfumavam e em cima era a Monalisa quem me dava um sorrisinho. Aqui e acolá, no entremeio dessas passagens, mergulhei profundamente nos jardins e luzes do impressionismo. Que maravilha!

O impressionismo foi um movimento de arte que ia contra os ideais academicistas da época, por volta de 1874. Assim, as obras pretendiam imortalizar o momento, criando a impressão de espontaneidade. O que realmente importava era a variação da luz e da cor capturada em diferentes momentos do dia e em diferentes estações, como se quisessem capturar o instante imediato, de cenas e espaços. A composição e geração de efeitos visuais configuravam a fixação do instante captado. Retratava a figura humana e cada vez mais focava no desenho. Além disso, os experimentos com a nova gama de produção industrial de tinta a óleo foram muito realizados.

Édouard Manet, Renoir, Degas e Claude Monet foram os grandes expoentes desse movimento que se constituiu na mola propulsora da renovação da arte para o século XX.

Moulin de La Galette (Renoir) considerado um dos quadros mais importantes desse período, ficou marcado por suas pinceladas carregadas de cores vibrantes transmitindo o dinamismo do momento percebido na movimentação da multidão.

Pierre-Auguste Renoir (1841-1919) tinha como proposta desenvolver temas metropolitanos, corriqueiros e burgueses. Ele dá atenção à brevidade das cenas num contexto de interação entre as pessoas. Renoir busca captar a transitoriedade dos momentos expressos no semblante e nas personalidades (GOMPERTZ, 2013). Para não perder as condições luminosas da ocasião, realiza esboços de cor, ainda no local, para posteriormente completar a obra no estúdio (BALZI, 2009).

Baile no Moulin de la Galette, 1876 - óleo sobre tela 78 cm x 114 cm - Museu d’Orsay, Paris.

O objetivo de Renoir com essa representação de um dos salões de dança mais populares de Montmartre, o Moinho de La Galette, era mostrar o prazer, a alegria e transmitir as suas sensações visuais através da tinta. Retrata-se uma imagem instantânea, fugaz. Os amigos e conhecidos de Renoir posaram para o quadro, incluindo Jeanne e a sua filha, Estelle: a jovem sentada no banco e a outra inclinada sobre ela.

Fiel aos princípios impressionistas, Renoir pintou esse quadro ao ar livre. A cena se passa sob a luz do dia e as luzes elétricas, que, na época, ainda eram uma novidade, faziam parte da atração do jardim de dança. Renoir captou verdadeiramente o efeito da luz natural e das luzes artificiais, sobretudo nas manchas de luz que penetram na folhagem de cima. E foi precisamente esse efeito desfocado, que quase parece dissolver as imagens.

Com a evolução e propagação desse movimento, a pintura e seus ideais impressionistas chegaram ao Brasil e trouxeram consigo ​​a pintura rápida de paisagem ao ar livre e o comércio da inovadora gama de cores industriais, a partir das décadas de 1880. Consequentemente, os pintores brasileiros já poderiam ser designados como impressionistas. Nomes como por exemplo Grimm, Visconti, Arthur e João Timóteo da Costa, Georgina e Lucílio de Albuquerque, Castagneto e Parreiras, compõem o grupo de artistas brasileiros que se enquadram nesse movimento.

Um dos quadros deste período é semelhante ao quadro dissolvido e vibrante de Renoir através da pincelada marcada e o dinamismo retratado em grupos burgueses. Com 46 anos de diferença entre ambas obras, as técnicas permanecem, mas os estilos e propostas se divergem. A autora por trás dessa obra genial, que retoma princípios impressionistas, mas que impõe seu trabalho em um contexto machista, é Georgina Albuquerque.

"Sessão do Conselho de Estado" (1922), de Georgina de Albuquerque.

Em um contexto histórico com referências majoritariamente masculinas, até 1922 não havia nenhuma mulher que se dedicasse ao gênero de pintura histórica na época. Esse cenário muda com a realização de Sessão do Conselho de Estado (1922) de Georgina Albuquerque, que contraria os princípios desse gênero artístico, além de desafiar os valores sociais instituídos daquele período.

A artista contraria a expectativa pressuposta sob uma pintura histórica, que tradicionalmente seria um evento histórico de aclamação, como uma batalha, algum momento monumental da história nacional. Ao invés disso, ela retrata uma sessão diplomática dentro de um gabinete oficial, em que, talvez o aspecto mais surpreendente da obra naquele contexto, a figura heroica representada é também, uma mulher.

Essa feminilidade na obra foi um espanto na época através da ruptura das expectativas pois, segundo Gombrich em seu estudo Arte e ilusão: um estudo da psicologia da representação pictórica, quando o espectador está diante de um quadro, ele utiliza sua capacidade de reconhecer, usando seu repertório de objetos representados na tela vista e obras já vistas antes. Assim, a memória do indivíduo faz um diálogo entre seus repertórios e se choca com a representação feminina heroica, já que era algo diferente da configuração tradicional da época.

Portanto, Georgina de Albuquerque foi revolucionária em seu período, desafiando o contexto mental ali exposto. Essa oposição acontece por exemplo, pela adoção da imagem heroica ser inovadora, pois é uma personagem feminina. A composição da obra também é uma oposição ao modo tradicional instituído na época, em que acima estão colocados os figurantes aos invés de protagonistas, que seria o modus operandi. Além dessas questões artísticas, é uma ruptura com os valores da época, já que esse tipo de obra é produzido majoritariamente por homens.

Assim entre artes, caminho. Desde uma referência clássica do impressionismo até uma artista revolucionária completamente esquecida. Ambos com suas pinceladas que borram e desmancham o desenho, carregadas de cores, e que se relacionam com a luz. Mas enquanto a obra do artista francês é uma cena do cotidiano que imortaliza o momento, o quadro da brasileira é uma ação e um momento imortalizado pelo procedimento e escolhas que conformam a ruptura da representação e dos valores sexistas.

REFERÊNCIAS

CHAIMOVICH, Felipe. O impressionismo e o Brasil. mam.org.br. Disponível em: https://mam.org.br/exposicao/o-impressionismo-e-o-brasil. Acesso em: 27 set. 2023.

CAVALCANTI SIMIONI, Ana Paula. ENTRE CONVENÇÕES E DISCRETAS OUSADIAS: Georgina de Albuquerque e a pintura histórica feminina no Brasil Dissertação. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/VynXp7ZkxLLm8jSKW6kXyWQ/. Acesso em: 27 set. 2023

ANAPUR, Eli. Bal du Moulin de la Galette - A Dazzling Example of Renoir's Talent for Capturing Light. widewalls. 2022. Disponível em https://www.widewalls.ch/magazine/bal-du-moulin-de-la-galette-renoir. Acesso em: 27 set.

FARTHING, Stephen. Tudo sobre arte: os movimentos e as obras mais importantes de todos os tempos. Rio de Janeiro: Sextante, 2011.

BALZI, Juan José. Impressionismo. São Paulo, Claridade, 2009.

GOMPERTZ, WILL; BORGES, MARIA LUIZA X. DE A.. ISSO E ARTE? - 150 ANOS DE ARTE MODERNA: DO IMPRESSIONISMO ATE HOJE, f. 223. 445 p.