Por Marcos Albuquerque
As ruas do Centro de Florianópolis são palco de cenas variadas. Tem gente que joga xadrez em mesas de concreto em algumas das esquinas. São sempre dois no desafio e outros senhores acompanhando de perto. Usando coletes verdes, pelo menos vinte negociantes compõem um grupo que grita o dia todo “compro ouro”. Parados no semáforo, uma mulher discute com o homem do carro ao lado sobre a posição do veículo na via. De roupa amarela e debaixo do sol, uma idosa derruba a sacola ao tentar se esquivar de uma placa não vista enquanto mexia no celular. Entre uma loja e outra, um consultório e uma repartição pública, os sons que chegam aos ouvidos de quem passa variam do sertanejo aos desejos de “bom dia”.
Essas ruas tão marcadas pela movimentação humana, são local fixo de trabalho para alguns moradores da cidade.
Enquanto observam o vai e vem diário, cada um faz aquilo que sabe de melhor, movidos por razões pessoais distintas.
Esta reportagem buscou conhecer quatro desses trabalhadores da região. Ao contrário da maioria dos que por ali estão, muitas vezes só de passagem, Adi, Giani, Luis e Leandro, fazem da rua, um outro lugar.
Aos mais apressados, são invisíveis. Pelos que conhecem seus trabalhos, profissionais admirados. Existe ainda a possibilidade de serem vistos como só mais um corpo compondo a massa conturbada de gente que se cruza para lá e para cá. Confira as histórias destas figuras centrais.
É na frente do vão central do Mercado Público, ao lado do Camelódromo Municipal, que Adi Borges Torquatto, mais conhecido como Mensageiro Sertanejo, canta aos quatro cantos, acompanhado dos seus 10 CDs e uma caixa de som. Ao todo, segundo ele, tem no repertório 1634 músicas autorais, número que fez questão de repetir mais de uma vez durante a nossa conversa.
Manezinho, Adi nasceu em Florianópolis no dia 16 de novembro do ano de 1950. Já a música, ganhou o menino quando tinha 8 anos de idade e recebeu um presente do pai. O momento rendeu uma das canções preferidas do artista.
Dali pra frente, Adi não parou mais. “Comecei tocando violão em barzinho e boteco, brincando. E daí foi dando certo, passei a tocar profissionalmente e estou até hoje”. As canções são principalmente do estilo sertanejo, como o próprio nome artístico já sugere, mas não ficam restritas ao ritmo de origem caipira. “Eu tenho música caipira e outras que não são caipira, é a minha versão mista. A minha música fala muito de realidade. Tenho música de viola que fala sobre a roça. Música que fala sobre as mães, homenagem aos pais. Meu público é amplo.”
Algumas de suas composições homenageiam a cidade de Florianópolis. Nas letras estão presentes citações às praias da cidade, pontos turísticos, como a ponte Hercílio Luz, à Catedral Metropolitana e o próprio Mercado Público, prédio histórico em frente ao qual ele se apresenta.
Além de cantar no Centro, onde se apresenta há cerca de um ano, ele também faz aniversários, festas de 15 anos e outros eventos privados. Por causa de uma das músicas que versam sobre a cidade, Adi foi chamado para um novo desafio. “Agora estou sendo convidado por uma entidade para tocar em todos os eventos deles por um ano. Em março assino o contrato.”
A divulgação do trabalho acontece ainda nas redes sociais. O artista conta que até na plataforma de vídeos mais badalada do momento, TikTok, suas músicas já estão presentes.
Qual o lucro com seu trabalho aqui?
"Tem dia que vende R$ 100, 200, 20. Não tem fixo, mas sempre vendo. Tenho CD, pen drive com 160 músicas minhas, custa 40 reais e meu cds custam 10 reais."
As apresentações não são a única fonte de renda do cantor. Adi dividiu por anos a carreira artística com a profissão de garçom, pela qual hoje é aposentado, fazendo com que os valores que recebe da música sirvam como complemento de receita.
Rotina das ruas
Para encontrar o Mensageiro Sertanejo no Centro, é preciso acordar cedo e transitar entre às 7h da manhã e o meio-dia. Morador da região, ele deixa os equipamentos de trabalho - a caixa de som, CDs, microfone e um tripé - guardados no Camelódromo, onde conseguiu uma parceria. Assim é só chegar no ponto para o qual vai a pé todos os dias e montar seu palco improvisado. Os shows acontecem de segunda a sábado.
“Gosto demais de estar no centro. É um meio de viver, né. Eu vou ficar parado em casa porque estou aposentado? Não. Tem que trabalhar, fazer alguma coisa. Então eu vendo meu CD aqui e já dá para a despesa de casa"
Dos jovens aos mais velhos, pessoas de todos os públicos costumam parar para escutar um pouco da moda caipira que ecoa dali. “Me dão muita força, me botam muito para cima. Não tem dinheiro que pague".
Duas experiências vivenciadas no ponto central foram marcantes para o cantor. A primeira delas, foi a de uma mulher que comprou seu CD enquanto passava por uma depressão. Certo dia ela foi até o local de apresentações do músico e agradeceu por uma das canções do disco, que segundo ela, ajudou no enfrentamento da doença. “Me sinto feliz, grato por isso. Quem admitiu foi ela, chegou para mim e falou: ``Tô curada".
Já a segunda das histórias, tem uma narrativa de características bem diferentes.
Para o cantor que acredita que a música é dom de Deus em sua vida, já que nenhum integrante da família trabalhava no meio, memórias de outros tempos vieram à mente momentos antes de nossa despedida.
Nas ruas e nos versos, Adi saúda a cidade.
Ao lado do Banco do Brasil, na esquina das ruas Felipe Schmidt com a Jerônimo Coelho, centro de Florianópolis, enquanto um guarda-sol amarelo balança acima dela, Giani conta que essa é uma pergunta feita com frequência por homens quando chegam à sua banca. Consciente do respeito que merece e da importância do seu trabalho, ela sempre responde com veemência que língua não afia, que talvez a Bíblia possa fazer isso por eles, mas que como nenhuma outra mulher na cidade domina o ofício de afiar alicates, facas, tesouras e outros equipamentos semelhantes usando a força das mãos e movimentos ritmados com uma lima.
Olá. Eu me chamo Giani, tenho 45 anos e já sou afiadora há praticamente vinte anos. Aprendi com meu falecido marido, mas exerço a profissão sozinha há 15, até porque ele faleceu tem 10 anos. Iniciei com 18 anos e sou a única mulher afiadora no Centro da cidade de Florianópolis.
Até aprender a atividade com o falecido marido, Giani teve um longo caminho. Catarinense, nascida em Bom Retiro, cidade do planalto serrano, veio para o litoral ainda jovem, ao lado da mãe. Em meio à adolescência, com 14 anos, começou aquele que foi seu primeiro trabalho: o de babá e doméstica. Indo de um apartamento a outro, no bairro de Coqueiros, porção continental de Florianópolis, ela ainda nem desconfiava da carreira que ia acabar seguindo.
Tinha seus 18 anos quando atravessou a ponte e veio até o centro da capital. Neste dia conheceu o seu antigo companheiro, com quem passou a conversar. Com ele casou, foi companheira por vinte anos e da união tiveram uma filha.
O marido era gaúcho e trabalhou por 30 anos como afiador na cidade, na praça XV de Novembro. Além de ensinar o ofício à ela, também formou outros três afiadores florianopolitanos. Um ainda está nas ruas, outro já morreu e o terceiro, trabalha à domicílio.
Como foi o processo de aprendizado para a senhora?
“Não foi fácil. Até porque eu comecei na faca, depois tesoura e por fim, alicate de cutícula, que é o mais difícil. Mas aprendi todas as técnicas. Aprendi a saber porque se perde o fio, como destrancar uma ferramenta, como colocar um eixo, tudo eu aprendi.”
Dia-a-dia
Moradora do bairro de Coqueiros, Giani vem todos os dias de ônibus para o local de trabalho. No ponto em que fica, no Centro, chega às 9h e permanece até às 17h. Antes de começar a trabalhar, faz parte da rotina levar a filha pequena, de 3 anos, para a creche. Além dela, é mãe de outra menina, de 18 anos, que assim como Giani, já está trabalhando. “Ela terminou o terceiro ano. À princípio ela tinha várias coisas que queria ser, mas muda muito devido à idade. Perguntei para ela: o que tu queres estudar agora? Então ela me disse que primeiro quer trabalhar por um tempo. De toda forma, vejo que ela sempre está se empenhando na língua portuguesa. Quando escreve para mim (mensagens) é ponto, vírgula, é show.”
Com a pandemia, o dia-a-dia havia sido alterado e por um tempo a afiadora ficou impossibilitada de ir para o centro diante do cenário epidemiológico da Covid-19. Isolada em casa e sem trabalho, conseguiu receber cinco parcelas do auxílio emergencial, benefício que ajudou no equilíbrio das contas. Contou também com o apoio financeiro do ex-companheiro, pai da filha caçula, de quem hoje já é divorciada.
Passados dois anos da chegada do novo coronavírus, a situação está se normalizando. “Essa é minha única fonte de renda. Consigo me manter e atualmente o movimento está bom, tenho mais procura. Por dia, afio de dez a quinze peças. De cinco a dez minutos levo em cada peça.”
Todo o processo de afiação é realizado de forma manual, usando limas. A ferramenta garante que o desgaste de alicates e outros objetos a cada afiação seja menor que o decorrente de outras técnicas. “As clientes chegam perguntando se eu não gasto alicate, porque outros afiadores afiam com pedra e gastam toda a peça. Então esse é meu diferencial de não gastar a peça do cliente para ele não sair entristecido. Um alicate mais barato custa em torno de 23 reais. Uma peça nesta faixa de preço, se afiado com lima, suporta 40 afiações. Se for na pedra, em média 15 afiações.”
O centro da cidade é um dos locais mais movimentados de Florianópolis durante a semana. Barulhento, com um trânsito de pessoas por vezes caótico, é lugar que Giani conhece bem.
“Eu adoro trabalhar aqui, no meio desse povão, onde um é amigo do outro.” Ela destaca que estar no meio das pessoas é importante, principalmente porque em casa divide o tempo somente com a filha pequena, ficando distante de outras interações sociais. “Eu digo que é uma terapia. Até mesmo quando paro para ajudar as pessoas, que muitas vezes chegam com irritabilidade, sem paciência”.
Da esquina onde afia e afia, outro comportamento chama sua atenção. Giani observa que em meio à correria do dia-a-dia, há um certo “nervosismo” comum a muitos que passam pela rua.
“Vejo que o nervosismo delas faz elas procurarem mais álcool, mais cigarro. Tem uma moça que me chama muita atenção, ela fuma três ou quatro cigarros em um intervalo de vinte minutos ali em cima. É o nervosismo das pessoas. Tudo nessa correria direto, uma passando pra lá, outras se esbarrando.”
E a natureza? Como as condições do tempo influenciam no seu trabalho aqui?
“A natureza não me atrapalha para trabalhar. O que mais me chateia é quando as pessoas fazem as necessidades fisiológicas aqui no canto. Hoje eu lavei tudo com água sanitária aqui, pinho sol. Às vezes eu jogo álcool para ficar mais tranquilo, boto um bom ar também".
Você é realizada com o que faz?
“Eu não me vejo trabalhando em outra coisa. Por que? Porque eu já tive muitas experiências trabalhando em casa de ricos, bem ricos mesmo. Delegado, advogado, juiz. Eu tive uma experiência muito linda em cuidar dos filhos deles, dar amor aos filhos deles. Então eu vi que o tempo de realizar isso que eu realizei bem antes quando eu era jovem, agora já tenho 45 anos, já foi. Eu não me vejo em outra profissão que não seja afiadora.
Sou muito grata à Deus por fazer eu conseguir aprender, porque a esposa de outro afiador também tentou e não conseguiu. Vejo que afiar é um dom. Não é qualquer pessoa que consegue afiar um alicate super afiado para que a cliente saia satisfeita e diga: Realmente Giani, você é a melhor! Isso me dá muita satisfação".
Enquanto fazia algumas fotos do seu local de trabalho e outras dela, Giani expressou o desejo de me contar sobre um aspecto que considera importante de sua profissão. O vídeo a seguir é a metade final de minha conversa com ela, apresentado na íntegra aqui.
Há uma escadaria que une a Avenida Osmar Cunha, localizada na parte baixa, com a rua Nereu Ramos, no terreno superior. São 30 degraus, acompanhados de corrimões de cor vermelha, que de longe chamam atenção. No vão central da escadaria, nem tão aparente assim, estão as caixas cheias de ervas medicinais que Luis Carlos Pereira vende por ali.
“Eu comecei a ter conhecimento das plantas medicinais quando tinha 25 anos. Eu vim para Florianópolis e vi que aqui na cidade as pessoas buscavam bastante por isso, tinha demanda. Aí eu resolvi abrir a banca e vender elas por aqui. Tô aqui até hoje. Faz vinte anos de Centro, mas nesse ponto faz oito anos. Antes trabalhava no Direto do Campo.”
Era 31 de maio de 1967 quando ele nasceu, na serra de Lages. De família indígena, o envolvimento com as ervas é herança do costume dos avós. “Meus avós eram índios, bugres. Os dois moravam em Lages, quando a cidade ainda era de interior, com muita mata.” O avô, João Maria. Maria Izabel a avó. Ambos manuseavam e utilizavam plantas medicinais para diferentes fins. “Eu peguei o dom deles e dei continuidade ao trabalho”.
Luis mora no município de Biguaçu, cidade que fica a cerca de vinte quilômetros de Florianópolis. O vendedor vem para a capital de ônibus, de terça à sexta, dias em que pode ser encontrado na escadaria das 8h às 17h. É em Biguaçu que cultiva metade das ervas disponíveis na sua banca. O plantio acontece em um terreno da irmã, sem uso de agrotóxicos, apenas adubo orgânico. “Tenho cerca de sessenta tipos de ervas na minha horta”.
Os demais produtos vendidos na escadaria vêm, primeiro, de outras regiões do país. Luis tem fornecedores de estados como São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás. Outras espécies comercializadas, coleta em áreas verdes e matas do sítio de um conhecido na região metropolitana da capital catarinense.
Companheira e vendas na pandemia
Há quinze anos Luís conheceu aquela que se tornaria sua companheira de vida e também dos negócios. Servidora pública aposentada, natural do Rio de Janeiro, ele conta que a esposa conhece bastante sobre ervas medicinais e que o ajudava nas vendas do centro. A situação mudou com a pandemia. “Ela tem imunidade muito baixa”. Diante dos riscos, quando ainda não havia vacina, ela se isolou em casa. Luis também ficou um tempo sem trabalhar, mas agora retornou à rotina normal. O vendedor e a esposa não foram contaminados pela Covid e atualmente estão vacinados com a terceira dose do imunizante contra a doença.
Sozinho no centro, acompanhou o período de queda do movimento e das vendas, e mesmo hoje, com a melhora da situação epidemiológica, defende que a situação ainda não se normalizou. “Eu chegava a vender 4 ou 5 mil por mês. Hoje vendo 2 mil e pouco. A clientela caiu, olha aí o tanto de gente que tem. É pingadinho, né? Isso aqui era um lugar muito povoado de gente. Tem dias que tem movimento, mas nada estabelecido.”
A procura pelos produtos comercializados por Luis costuma aumentar a partir do mês de abril, quando há um crescimento dos casos de síndromes gripais pela aproximação - e posterior chegada - do inverno. No verão é comum que procurem por medicamentos para doenças como diabetes, pressão alta, colesterol, alergias, um pouco diferente do que é destaque na outra estação. “Com o frio eles buscam mais remédios quentes: Guaco, eucalipto, poejo, pariparoba, gengibre, canela, todos para fazer chá e principalmente, xarope.”
Qual o preço dos seus produtos?
“O pacote de qualquer medicamento, com 300g, custa 7 reais. Assim dá uma média de R$ 200 reais por dia quando tem bastante movimento, R$ 100 quando tem pouco.”
O senhor consome ervas medicinais também?
"Os remédios que tomo são sempre à base de ervas medicinais. A gente pode pegar muitos resfriados, trabalhando na rua principalmente. Mas é custoso eu ficar gripado, tenho uma saúde boa.'"
Natureza
“A natureza é tudo. Eu vivo através dela. Eu não sei viver sem ela. Tenho minha lavoura, planto, vou na mata buscar as ervas.”
Para quem está conhecendo Leandro Ribeiro assim, de camisa azul, mochila pendurada no braço, não é fácil compreender de imediato qual relação ele teria com a empresa estadunidense dona das histórias de heróis mais conhecidas no mundo. Para quem circula com frequência pela rua Conselheiro Mafra, ao lado do Mercado Público, identificar a relação da companhia de entretenimento com a história dele não é tarefa difícil.
Mas eu criei como estátua-viva.
Em cima de um pequeno palco, com a pele parcialmente pintada e peças de roupa que refletem a luz do dia, Leandro empresta o corpo ao personagem do surfista prateado.
“Eu comecei depois do filme do Quarteto Fantástico, com o surfista prateado. Depois de ver eu tive a ideia, dei uma pesquisada no Google, para ver se tinha alguém que fazia esse trabalho e não tinha. Aí resolvi fazer esse personagem. No começo foi um estouro. Aqui no centro todos queriam tirar foto. Agora já vai fazer uns dez anos desde que comecei".
Antes de decidir dar vida ao vilão do cinema aqui no Brasil, Leandro descobriu a arte de estátua-viva pela televisão. Enquanto assistia um programa conheceu pessoas que faziam este trabalho em Nova York, representando a Estátua da Liberdade, monumento imponente da cidade, conhecido mundo afora.
A primeira concepção artística do personagem foi simples e ajudou a definir quais materiais seriam mais adequados para a caracterização e o que não funcionava. Leandro começou a se apresentar de bermuda e sem camisa , com o peito e as costas, além do restante do corpo que ficava exposto, pintados com um spray de tinta prata. O artista, no entanto, começou a sentir falta de ar enquanto fazia sua performance e descobriu que a culpa era da tinta, que ao secar, obstruía os poros e impedia o processo de transpiração corporal.
Com isso, o plano precisou mudar e Leandro elaborou a atual configuração do seu personagem. Fez um traje novo, que inclui bermuda, como antes, mas também uma camiseta, ambos na cor prata, de um tecido com elementos cintilantes. Além disso, a pintura passou a ser feita com outros materiais, como ele explica abaixo.
Natural de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, o artista iniciou sua história como estátua-viva inspirado pela figura fictícia, mas por causa de um momento delicado que enfrentava no mundo real.
No período que antecedeu a criação do seu personagem, o trabalho nas ruas já fazia parte da vida de Leandro. Por muitos anos foi vendedor ambulante na cidade de Santa Maria. “Eu trabalhava como vendedor autônomo, mas devido a algumas apreensões, a gente viajava muito para o Paraguai, dei um tempo”. Como plano B, apareceu a oportunidade de ter um stand comercial em um shopping popular da cidade, mas o negócio também não vingou. “Botei uma mercadoria e não deu certo. Botei outra e não deu certo. Aí meus filhos vieram bem nessa época. Acabava consumindo o que ganhava no mesmo dia, comprando fralda. Chegava no final do mês tinha que pagar o aluguel do stand, despesas de casa”. Leandro acabou devolvendo o ponto e para conseguir renda, voltou a ser ambulante.
Duas estações
Em Florianópolis, trabalha apenas durante a temporada de verão. A migração temporária para o litoral catarinense acontece por dois motivos. Com ensino fundamental incompleto, uma das únicas áreas com contratação na região de onde vem é a agricultura, para colheitas sazonais e funções semelhantes. Leandro, no entanto, diz desconhecer questões agrícolas. Na opção que lhe acompanhou durante toda a vida, a de ambulante, tem por diante outra questão por lá: o movimento reduzido de pessoas nas ruas da cidade coração do estado gaúcho e as altas temperaturas, se comparado com o que vê e experiencia no centro de Florianópolis, ambiente que considera mais convidativo.
Por aqui ele arrecada cerca de R$ 90 por dia. "É daqui que eu consigo tirar meu sustento. Me manter e manter meus filhos lá no Rio Grande do Sul". O apoio aos filhos é quase integral, já que os avós, mesmo com a guarda dos netos de 9 e 12 anos, enfrentam problemas de saúde que dificultam o trabalho. "A única renda que sai é daqui e algum pátio por lá que ele arruma para limpar". Mesmo com o bom resultado da temporada, ficar na ilha o ano todo é impraticável por causa do custo de vida. "Se não fosse muito caro, eu gostaria de morar aqui".
Quando volta para Santa Maria, segue com o trabalho de estátua-viva, mas na maior parte do tempo assume outro personagem: o de um soldado. A mudança ocorre principalmente no inverno, estação em que não consegue suportar as temperaturas baixas na rua com o figurino de surfista prateado.
Além da perfomance artística, vende panos de pratos e guarda-chuvas para equilibrar as contas em solo gaúcho, acréscimo trazido também pela atividade de coleta e venda de latinhas de refrigerante. "Estocava em casa e no final do mês eu vendia, mandava o dinheiro para os meus filhos. No mês, dando uma ou duas voltas por dia, dava na média de R$ 380, R$400 reais".
Sob o tempo e os olhares do público
Leandro chega ao centro sempre próximo das nove horas, depois de um longo caminho de ônibus que inicia no bairro dos Ingleses, onde passa a temporada na casa de parentes e colabora financeiramente. A preparação debaixo da sombra das árvores entre o Mercado e a Casa da Alfândega leva entre cinco e dez minutos.
Os dias de sol, embora muitas vezes escaldantes, são os preferidos do artista. Com a luz refletida em sua pele e na roupa, o efeito prateado se intensifica. Em dia de muita chuva, ele nem sai de casa.
Até pouco tempo, passava cerca de três horas seguidas fazendo sua perfomance, para só depois fazer um intervalo. A duração das apresentações mudou nos últimos meses depois que fez uma cirurgia para o tratamento de uma úlcera no estômago."O máximo que eu fico aqui é quarenta, cinquenta minutos. A cada tempo eu vou lá na sombra, dou uma refrigerada no corpo, tomo uma água mineral para repor o que perdi de líquido, descanso e volto. E assim vou indo no decorrer do dia”.
Com os movimentos congelados em cima do palco, observa que a maior parte do seu público é composto por crianças. “Meu público é as crianças. E agora como começaram as aulas, meu público não tá aí, mas hoje é um dia que elas vem para o centro, é sábado”.
Para quem colabora com moedas e cédulas, ou mesmo aqueles que demonstram interesse e admiração pelo seu trabalho, o surfista prateado volta a se movimentar, contrariando as leis que regem o estatuto das estátuas e entrega pequenos recadinhos impressos em papel.
“O SILÊNCIO ÀS VEZES É NECESSÁRIO PARA QUE POSSAMOS OUVIR NOSSA VOZ INTERIOR, PARA LEVAR LUZ PARA A SOLUÇÃO DO QUE DESEJAMOS"
E os adultos, o que dizem?
“Alguns criticam, outros elogiam. Acham que eu sou um guerreiro, outros um vagabundo, consideram que isso aqui não é um trabalho. Só que aqui eu não meto a mão no bolso de ninguém. Eu fico ali no sol, não saio pedindo moedinha pra ninguém. A pessoa se quiser contribuir… não quer, passa reto, tudo bem.”
“Quem mais me ajuda é o pobre. Quem tem menos, ajuda quem tem menos. Porque quem tem muito, não pensa nos outros. Eu vejo pessoas que vêm do morro que tem menos condições do que quem mora lá em Jurerê, que passam ali e nem me olham. E o povo do morro, eles vêm e admiram minha arte".
Como aprendeu a ficar imóvel?
Eu treinei muito em casa antes de começar a me apresentar. As primeiras vezes fiquei meio encabulado, mas daí como tive retorno e o pessoal começou a gostar, já fiquei mais solto. Agora consigo bem.
E quando tá parado ali, pensa no que?
Eu penso em tudo. O pensamento vai longe. Às vezes foge, a alma sai até do corpo.
E continua ali, paradinho?
Continuo ali.
Para o futuro, Leandro quer um lar. Todos os que já teve perdeu ou teve de deixar por diferentes questões externas. "Quero buscar um lar pra mim. Não ficar pagando aluguel e não ficar pela rua, porque eu já tenho quarenta e sete anos.” Além disso, sonha em materializar novos personagens. "Com tema bíblico. Moisés ou José. Conforme a situação financeira também, porque essas coisas custam dinheiro".
Antes de terminar minha conversa com ele, pergunto como equilibra a relação entre o Leandro, que na rua poucos conhecem, e o surfista prateado, que brilha na frente de quem passa no ponto central da cidade.
Esta reportagem foi produzida como trabalho avaliativo para a disciplina de Jornalismo Online e Narrativas Digitais, do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina, no semestre 2021.2, sob orientação das professoras Fabiana Piccinin e Rita Paulino. O material, pelo seu perfil, foi cedido também ao acervo do Cotidiano UFSC.
SOBRE O AUTOR
Gaúcho, de Eugênio de Castro, há dois anos estudo jornalismo na UFSC. Conhecer histórias de pessoas comuns é um ótimo exercício. Acredito que ouvir como cada um dá significado aos sonhos e lida com suas angústias traz aprendizados para além da apuração jornalística.
SOBRE A REPORTAGEM
O desejo de conhecer um pouco mais sobre trabalhadores das ruas do Centro de Florianópolis nasceu da minha própria rotina. Por conta de estágio que realizo na região, passo todos os dias pelas ruas repletas de pessoas e, curioso, sempre prestei atenção às atividades que cada uma desenvolve por ali. Por que não conhecer um pouco mais de quem está por trás daquela função e as particularidades do ofício?
Texto, Fotografia, Vídeo, Edição e Produção, por Marcos Albuquerque
Publicada em 23/03/2022