À sombra da epidemia: o enigma do calazar canino no município do Rio de Janeiro por larissa celano g. bianco

Danka.

Esse foi seu nome oficial, mas não seu nome do coração. Afinal, ninguém a conhecia por outro nome que não fosse Peppa, ainda que eu um dia tivesse jurado que jamais teria um animal com um nome tão bobo. Mas esse era seu nome, e era tão abobalhada quanto a ideia de ser nomeada em homenagem a uma porca de um desenho infantil.

Ela foi tudo que eu sempre quis em um cão e mais. De uma forma que me cativava tão intensamente que sentia como se fôssemos um emaranhado de uma só alma. Me preocupei mais com o seu bem-estar do que jamais com o meu próprio, e nutri um amor e preocupação que iam além de mim.

Seria esse o amor maternal que neguei ter durante todos esses anos? Parecia estranho imaginar (quase errado, proibido) que, apesar de minha incapacidade de nutrir o desejo de um filho humano, a amava como se fosse uma.

Peppa foi a luz nos meus dias mais sombrios. A única gota de felicidade que me restou em todos os momentos assombrados por anos das mais variadas inseguranças e defeitos. Com ela, podia fingir que minhas fraquezas eram apenas obra do meu imaginário. Com ela, não havia mal, apenas o bem.

Muitas vezes, foi esse próprio pensamento a razão de minhas noites em claro. Quantas vezes não repeti a frase “o dia em que ela morrer, eu irei junto”? O futuro se tornou um assombro. O tempo, meu maior inimigo. Se um dia imaginei, feliz, sua versão idosa após anos de parceria, um sentimento obscuro me dizia que esse dia talvez nunca chegasse.

O diagnóstico da doença veio pouco depois que completou quatro anos de idade - tão jovem, apesar de me parecer que tinha vivido décadas ao seu lado. Naquela tarde, vi meus piores pesadelos se tornarem realidade. E o tempo, meu maior inimigo, rir diante do meu desespero.

Seu pelo lustroso agora era opaco e sem vida. O olhar, sempre tão gentil, cansado. O rosto, repleto de cascas e feridas. Aos quatro anos e meio, aparentava ter vivido dez. Como se o tempo tivesse corrido mais depressa do que deveria, enquanto, lentamente, a matava.

Não me preparei para perdê-la. Em um ato de autoproteção estúpido, vivi os últimos meses como se nada estivesse errado, com recaídas esparsas enquanto tentava não imaginar quanto tempo nos restava. Soube que o momento se aproximava no dia em que foi internada, naquela manhã de janeiro. E a realização do que nos aguardava foi como uma rocha recaindo sobre meus ombros, me sufocando.

A notícia veio na manhã do sétimo dia. Na noite anterior, sua saúde havia deteriorado. Em um ato desesperado, mesmo na frente de outros, chorei e me debulhei enquanto implorava que partisse. Vê-la como estava, em sofrimento, um caco da cadela forte e saudável que um dia foi, me doía tanto quanto perdê-la de fato. Ao menos sua partida traria alívio a uma de nós.

Alívio regado de dor em um vazio interminável. Um espaço infinito, isento de luz. Essa foi a definição da minha própria cabeça. Um eco sem fim, fruto da minha própria incapacidade em processar a nova realidade. Uma realidade paralela, irreparável, alheia à gigante gentil que um dia foi a razão do meu viver.

Seria mentira dizer que me preparei para aquilo. Mesmo após quase vinte e seis anos de vida e incontáveis animais com os quais dividi memórias, lidar com a morte nunca se tornou mais fácil. E mesmo após os próximos vinte anos, ainda irei lembrar do dia em que ela me deixou como a perda mais difícil de todas.

A leishmaniose veio e se foi em um piscar de olhos, levando consigo uma pequena parte de mim que ainda sonhava com dias melhores. Sua chegada foi silenciosa, sorrateira. Quando se fez notar, foi um escândalo. Durante os seis meses em que, forçosamente, se fez parte de nossos dias, sua presença era como um encosto. Uma promessa cruel da infelicidade à espreita.

Quando se foi, levou tudo consigo, mas não sem deixar suas marcas. Como uma chama que ardeu e se extinguiu, os resquícios das feridas emocionais marcadas em nossas almas. Fumaça e fuligem que lágrima nenhuma é capaz de lavar. E eu me pergunto: quantos mais ainda sentirão o que sentimos?

Uma ameaça silenciosa

No coração da cidade do Rio de Janeiro, onde cartões postais se mesclam com histórias profundas e emocionantes, residem relatos que atravessam os limites da beleza natural e adentram o terreno da dor e da preocupação. Nos últimos anos, inúmeros tutores de cães de estimação na Cidade Maravilhosa viram-se envolvidos em uma batalha que transcende o pitoresco cenário urbano e mergulha em uma realidade sombria.

O município enfrenta um aumento alarmante no número de cães diagnosticados com leishmaniose visceral (também conhecida como calazar), doença tropical negligenciada que afeta tanto humanos quanto animais. Apesar do caráter originalmente rural, dados do Instituto Municipal de Vigilância Sanitária, Vigilância de Zoonoses e de Inspeção Agropecuária (Ivisa-Rio) apontam que a doença tem se espalhado cada vez mais nos grandes centros urbanos.

Na cidade, o calazar é transmitido pela picada do inseto popularmente chamado de mosquito-palha (Lutzomyia longipalpis), que carrega consigo o parasita da espécie Leishmania infantum. Diferentemente do popular Aedes Aegypti, mosquito transmissor da dengue que se reproduz em água parada, o inseto vetor da leishmaniose visceral tem preferência por ambientes ricos em matéria orgânica, como áreas de mata e, até mesmo, locais com alta concentração de lixo em áreas urbanas.

Dra. Aline Fagundes, bióloga, doutora em ciências e vigilância sanitária, e pesquisadora em leishmanioses há mais de 20 anos, explica o ciclo da doença:

Vale lembrar que, neste caso, a transmissão da leishmaniose visceral canina na região segue o ciclo vetor - cão - vetor - homem, não sendo transmitida de ser humano para ser humano

Desde 2017, o número de cães com suspeita de infecção pelo calazar aumentou 373% - passando de 600 para mais de 2.800 em 2022. O mesmo vale para a parcela de cães com diagnóstico positivo: com 38 casos confirmados em 2017, a cidade contabilizou 269 cães infectados em 2022. O número equivale a um salto impressionante de mais de 600%, tendo bairros da região do Grande Méier como principal foco.

Mapas da Vigilância Sanitária do Rio escancaram o aumento no número de casos da doença por região, em uma comparação entre os anos de 2017 e 2023 (Fotos: Divulgação/Ivisa-Rio)

Mais recentemente, dados da Ivisa-Rio mostram que, de janeiro a setembro de 2023, foram confirmados 283 casos de cães infectados, número superior ao contabilizado em todo o ano anterior. Piedade lidera a lista de bairros de maior incidência, com 39 animais. Confira no infográfico abaixo:

Os dados chamam atenção, uma vez que o cão doméstico se configura como principal reservatório da doença no cenário urbano. Uma vez picado pelo mosquito-palha infectado, o animal se torna o organismo perfeito para a proliferação do parasita que causa a leishmaniose.

“Sabemos que o cão é um animal que se infecta pela Leishmania com facilidade, e no qual ela sobrevive muito bem, você tem Leishmania em vários locais do organismo do animal. Ela se dissemina com muita facilidade, e por consequência de ter muitos parasitas e haver uma má distribuição muito grande dentro do organismo, é muito fácil para um inseto se infectar se alimentando do cão e então transmitir para outras pessoas”, explica Aline.

O fato do cão ser o principal alvo do inseto e da própria Leishmania se desenvolver mais rapidamente no organismo canino impacta diretamente no grau de infecção em seres humanos. Apesar do aumento expressivo no número de casos em cachorros nos últimos cinco anos, dados da Secretaria Municipal de Saúde apontam apenas 33 casos positivos e 10 óbitos humanos nos últimos dez anos (2012-2022).

Os sintomas são semelhantes aos observados em animais: febre, perda de peso, anemia, formação de feridas, distensão do baço, insuficiência renal e hepática, entre outros. A principal diferença do cão para o ser humano, no entanto, é que a leishmaniose visceral humana é tratável na rede pública de saúde; a canina, não. Dessa forma, ainda que conte com um baixo número de infecções, a doença representa uma letalidade de apenas 12% para seres humanos - número muito inferior ao observado em animais.

A partir de dados do Censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a Ivisa-Rio estipula que a cidade abriga ao menos 632 mil cães - isso significa contar com 10 cães para cada grupo de 100 pessoas na cidade. Imaginar que, em uma cidade com uma população de cerca de 6,3 milhões de pessoas, existir um número tão grande de animais com alto potencial de infecção traça um cenário que só tende a piorar.

Ainda, é importante ressaltar que o número de cães identificados sob o diagnóstico positivo para leishmaniose representa apenas uma pequena parcela do real diante das inúmeras variáveis, como cães assintomáticos, tutores que não levam os animais às consultas veterinárias ou, até mesmo, o alto índice de animais de rua que perambulam pela cidade.

Detectando sinais: os sintomas do calazar canino e sua importância para um diagnóstico preciso

Como o próprio nome sugere, a leishmaniose visceral irá atacar, principalmente, órgãos internos do animal, como baço, fígado e rins, fato que muitas vezes dificulta o diagnóstico precoce por parte do próprio tutor do animal. André Luis Fonseca é médico veterinário, especialista em imunologia das leishmanioses e doutor em saúde pública internacional e doenças tropicais. Ele destaca o tutor como “refratário”, ou seja, resistente a sinais indicativos de um mal-estar no animal, o que retarda a ida ao veterinário.

“A leishmaniose, por ser bem adaptada, não causa sintomas clássicos. No animal, os sintomas começam com uma indisposição, ele não vai querer interagir. Você vai pensar ‘Meu cachorro tá meio esquisito, triste, não quer brincar. Ele não tá comendo direito, acho que enjoou da ração’. Então, você compra uma ração nova, ele come durante uns dias e para novamente. Você acha que o animal está esquisito, triste - isso não é normal. Esse é o sintoma da leishmaniose: algo genérico, que se enxerga em qualquer doença. E o diagnóstico virá de outros sintomas identificados por meio de exames laboratoriais”.

(Foto: Divulgação/Câmara Municipal de Campo Grande)

A situação foi vivida de perto pela bióloga Tatiana Huguenin. Moradora do Méier, região focal da doença, ela conta que uma pequena diferença no comportamento de um de seus cães, Bóris, em 2020, despertou uma desconfiança que, mais tarde, teria nome: leishmaniose.

“Em casa, eu olhei pela janela e pensei ‘Meu cachorro está muito quieto’. Mesmo brincando e correndo, achei ele mais quieto do que o normal - foi quando mandei uma mensagem para a veterinária dele. Chegando na clínica, ele estava brincando, pulando em todo mundo. E todos falando ‘Você é louca, esse cachorro está maravilhoso’. A gengiva vermelha, estava tudo direitinho.”, conta a tutora de Boris, o pitbull.

O olhar afiado de Tatiana não errou. Apesar de ele aparentar estar saudável a olho nu, um rápido hemograma apontou uma queda grave na contagem de plaquetas no sistema sanguíneo de Bóris. Passados 15 dias do primeiro exame, um novo check-up acusou que a contagem havia reduzido para quase metade da anterior.

Boris foi o primeiro cão de Tatiana a ser diagnosticado com leishmaniose (Foto: Tatiana Huguenin)

Após uma ultrassonografia acusar uma série de nódulos no baço do cão, um dos órgãos mais atingidos pela leishmaniose visceral, um teste rápido apontou diagnóstico positivo para a doença. Ali nascia uma corrente de descobertas. A veterinária de confiança de Tatiana sugeriu a testagem dos demais cães que dividiam a casa com Bóris e a bióloga. O resultado não deixou dúvidas: outro dos cães de Tatiana, Barbinha, também tinha a doença.

Por constantemente dividir o quintal de casa com gatos errantes da vizinhança, Barbinha sofria com alergia às pulgas trazidas pelos felinos. Os sintomas eram semelhantes aos também provocados pela leishmaniose quando aparente: quedas de pelo e, posteriormente, feridas que não saravam.

A história de Tatiana com a leishmaniose não parava por aí. Nos últimos anos, ela adotou outros dois animais: Lorde e Pretinha, ambos com diagnóstico positivo para a doença - a última, com feridas severas ao longo do corpo, acompanhadas pela queda de pelo, tal qual Barbinha. Apesar de já conhecer a doença, a surpresa e a preocupação nunca foram menores.

“Minha reação ao descobrir foi péssima nas quatro vezes. Com o Boris, eu achei que ele fosse morrer imediatamente, pois quando vi o resultado das plaquetas, que tinham caído de 98 mil para 52 mil, eu falei ‘Meu cachorro vai morrer. Não vai dar tempo de fazer nada’. E então comecei a chorar. Só chorar”, conta Tatiana.

Pretinha desenvolveu feridas na pele e falhas de pelo graves antes de começar a tratar a leishmaniose (Fotos: Tatiana Huguenin)

Outros sintomas, além da apatia e quedas de pelo, incluem febre, crescimento anormal das unhas, emagrecimento repentino e surgimento de feridas no rosto e extremidades, como nariz, orelhas, cotovelos e ponta da cauda. Segundo o médico veterinário André Luis Fonseca, este último se dá por conta da incapacidade do inseto vetor de picar outras regiões em decorrência de seu tamanho.

“A leishmaniose é multifacetada. Alguns animais apresentam lesões na ponta da orelha, na cauda, no cotovelo. Porque o mosquito da leishmaniose é muito pequeno, ele não consegue picar o animal em qualquer lugar, porque ele só chega a três milímetros de comprimento, então ele vai picar na boca, no nariz, nas orelhas - regiões mais desprotegidas pelo pelo”.

Hoje, os quatro cães de Tatiana seguem estáveis enquanto realizam o tratamento. Enquanto dividem a casa com sua mãe do coração e outras dezenas de irmãos de alma, a tutora conta que investe e estuda sobre as medidas de prevenção a fim de manter os vetores longe de si, seus animais e demais vizinhos do entorno.

“Uso principalmente a coleira antimosquito e inseticidas daqueles de tomada, além de um composto repelente como pipeta nos cães, indicado por um veterinário. Também procuro não deixar mais nenhum gato entrar, porque eles matam morcegos, lagartixas, aves, e esses animais são importantes porque eles comem mosquito. É uma hipótese minha: se os gatos estão matando os predadores de mosquito, você pode ter um aumento. Conhecimento é tudo. Se eu não gostasse de estudar e apenas aceitasse, eu teria meus cães vivos? Provavelmente não”.

“Não imaginei que seria tão agressiva” - Renata Maia, tutora de Guga

As lágrimas ainda enchem os olhos de Renata Maia ao compartilhar a luta de Guga, seu amado companheiro canino, em uma história que ilustra a persistente ameaça da leishmaniose visceral canina no município e a urgência de entender e combater a doença.

“Eu o resgatei em Búzios, em 2019, para que pudesse ser doado. Queria conseguir uma família para ele, mas não consegui, porque ele era muito agarrado comigo e nós tínhamos uma ligação muito forte. Um ano depois, nós descobrimos a doença”.

O cão entrou na vida de Renata em Armação dos Búzios, na Região dos Lagos do estado, chegando a morar com ela e a companheira no Grajaú, Zona Norte da capital (Foto: Renata Maia)

Tudo começou com uma pequena descamação nas pontas das orelhas. Apesar de atacar predominantemente órgãos internos como baço, fígado e medula óssea, a leishmaniose visceral também apresenta sinais típicos da leishmaniose tegumentar (ou leishmaniose cutânea), que tem como principal sintoma a formação de úlceras na pele - fator que, muitas vezes, causa confusão no diagnóstico.

“Quando reparei nas casquinhas, pesquisei na internet e vi que poderia ser leishmaniose. Ali, minha primeira reação, mesmo antes de fazer o teste, foi passar a noite inteira chorando. Ainda não tinha feito nada, nenhum exame; eu só chorei. Chorei pela possibilidade”.

A descamação se inicia em pontos com menos pelo, como ao redor dos olhos (Foto: Renata Maia)

O diagnóstico foi realizado no Instituto Municipal de Medicina Veterinária Jorge Vaitsman (CJV), no bairro da Mangueira. Renata estava voltando para casa após uma consulta com Guga quando recebeu a fatídica ligação avisando que o diagnóstico havia dado positivo. “Ali, senti meu corpo congelar completamente”.

Tempos após a confirmação, Renata buscou um veterinário especialista para o tratamento de Guga. Apesar do primeiro diagnóstico positivo, a tutora conta que realizou outros três testes com a veterinária hematologista. Dois exames PCR (como os testes rápidos para diagnóstico de Covid-19) e uma punção de medula óssea. Para a surpresa das duas, todos os três apontaram resultado negativo.

Por um momento, a esperança de que o primeiro resultado pudesse estar errado. Além da descamação nas orelhas, Guga aparentava estar bem e não apresentava nenhum outro sintoma aparente. A torcida, no entanto, durou pouco. A partir da observação de uma amostra de sangue no microscópio, não restavam dúvidas: a presença da Leishmania, parasita responsável pela leishmaniose, era clara.

Ali, se iniciava uma batalha que duraria quatro longos anos. O primeiro desafio foi como enfrentar a doença: no Brasil, as únicas alternativas são a eutanásia ou o tratamento com um medicamento à base de miltefosina. Este último, no entanto, se prova um obstáculo, uma vez que a medicação é de altíssimo custo. Para Renata, a eutanásia nunca foi uma opção, mas custear o tratamento foi a primeira grande preocupação.

“Minha ligação com ele era muito forte, então a eutanásia jamais foi uma opção. Porém, eu não imaginei que seria uma doença tão devastadora como foi, que fosse tão difícil como foi. Eu sabia que não teria cura, mas não imaginei que seria tão agressiva. Lembro que quando recebi o diagnóstico, pensei ‘Vai ser uma doença que vai ter um gasto muito alto. Como que eu vou arranjar dinheiro para tratar?’”

Além de afetar a visão (à esquerda), a leishmaniose também chegou a comprometer a pele e pelagem de Guga de maneira severa (Fotos: Renata Maia)

De 2019 a 2023, Guga suportou os desdobramentos da leishmaniose de formas que surpreenderam mesmo profissionais já acostumados a lidar com a doença. Sem nunca deixar de se alimentar, o jovem vira-lata de cinco anos de idade era confundido com um cão idoso. O quadro anêmico era constante, sempre traçando uma linha tênue entre a possibilidade de precisar ou não de uma transfusão de sangue.

O calazar comprometeu sua visão e articulações, e lhe causou crises constantes de hemorragia. Após cinco ciclos de tratamento com a miltefosina, Guga se despediu de Renata e do restante da família em julho de 2023. Mesmo após uma longa batalha, a leishmaniose fazia mais uma vítima.

“Uma noite, pela primeira vez, ele começou a vomitar muito, um vômito escuro. Mesmo com os exames ótimos, naquele momento ele começou a ficar bem mal e aquilo acabou com ele. Ele morreu nos meus braços. Foi como se ele me dissesse ‘Eu não quero mais estar aqui; estou cansado’”.

Entre a esperança e a realidade: o tratamento como um privilégio de poucos

Seja ela cutânea ou visceral, a leishmaniose é uma doença sem cura. Uma vez infectado, o indivíduo está fadado a carregá-la consigo pelo resto de sua vida em uma batalha sem fim. Apesar de tratável, essa luta muitas vezes se desdobra em dois campos distintos: de um lado, cães afortunados contam com tratamentos de ponta que oferecem uma falsa esperança; do outro, a maioria enfrenta um desafio em busca de cuidados acessíveis. Assim, o tratamento da leishmaniose canina emerge como uma dualidade preocupante, em que a linha que separa o privilégio da necessidade é tão tênue quanto a asa de um mosquito.

O tratamento padrão se dá a partir da administração da miltefosina, um composto leishmanicida (ou seja, desenvolvido especificamente no combate à leishmaniose). Apesar da existência de outros dois leishmanicidas, a miltefosina é a única legalmente comercializada pelo Ministério da Agricultura e Pecuária no tratamento canino, a partir da Portaria Interministerial n.º 1426 de 11 de julho de 2008, que proíbe o uso de medicamentos humanos para tratar a doença em cães.

A portaria foi determinada por José Gomes Temporão (então Ministro da Saúde) e Reinhold Stephanes (então Ministro da Agricultura, Pecuária e Abastecimento) (Foto: Divulgação/Ministério da Saúde)

Além da miltefosina, são também utilizados medicamentos chamados de leishmanistáticos, drogas projetadas para o tratamento de outras doenças, mas que provaram surtir efeito ao controlar o aumento da carga parasitária no animal. Ainda que eficientes, não devem ser administrados sozinhos, uma vez que não agem na diminuição do número de parasitas do gênero Leishmania no organismo.

Um dos maiores desafios do tratamento é, além da doença em si, o acesso ao medicamento: o preço da miltefosina varia de cerca de R$800 a R$1.500 por ciclo, a depender da dosagem administrada. Em uma cidade cujo rendimento médio mensal equivale a 4,1 salários mínimos, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2021, abrir mão de até um quarto do salário na compra de um único medicamento se torna impossível para a maioria da população.

Isso porque o tratamento não inclui apenas a miltefosina, mas drogas auxiliares como os leishmanistáticos, visitas regulares ao médico veterinário, exames laboratoriais, entre outros gastos. Não à toa, órgãos de vigilância sanitária ainda recomendam a eutanásia como medida de controle. O médico veterinário André Luis Fonseca afirma que a prática é ineficaz, uma vez que não soluciona o problema da transmissão.

“Eutanasia não é método de controle e leishmaniose tem tratamento. Nós precisamos mudar esse contexto, principalmente a partir do Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV). Hoje, no Direito, existe o conceito de família multiespécie, então não dá para chegar em alguém que tem o cão como parte da família e mandar matar o animal; isso é inconcebível. O que falta é uma sensibilização por parte do CFMV e dos próprios veterinários”, defende o especialista.

“Todo os dias, minha filha chora procurando por ela” - Camila Castro, tutora de Saray e Mística

No coração da Cidade Maravilhosa, a vida de Camila Castro é marcada pelo amor incondicional e dedicação à família. Mãe da pequena Maria Antônia, de um ano e meio de idade, e de outros seis filhos de quatro patas, ela enfrentou a recente partida da adorável Mística para a leishmaniose visceral, deixando um vazio profundo nos corações de todos. Camila, agora, encara o desafio de cuidar da irmã da cadela, Saray, que também enfrenta a doença, assim como tantos outros tutores na metrópole carioca.

Saray e Mística integraram a família em 2020. Irmãs de coração, foi Saray aquela que chegou primeiro, dando espaço para Mística pouco tempo depois. A princípio, a filhotinha estava apenas de passagem, dividindo o espaço com a família da irmã apenas como um lar temporário. Desde o início, Camila foi enfática: “Desde o início eu briguei com o meu marido, porque não queria ela. Nós já tínhamos muitos cães e eu não me planejei para receber mais uma”.

A resistência não durou muito tempo. No dia em que o marido de Camila saiu para entregar Mística ao novo adotante, algo se partiu na tutora. Se a cadela havia parado em suas mãos, em seu lar, era lá que permaneceria: com seus irmãos e irmãs, como membro da família.

Saray (à esquerda) e Mística (à direita). Camila conta que as cadelas eram como irmãs: além de terem idades próximas, sempre foram próximas uma da outra (Fotos: Camila Castro)

Foi em outubro de 2021, quando as cadelas tinham pouco mais de um ano de idade, que o pesadelo começou. Saray foi a primeira a apresentar sintomas: feridas esparsas apareceram em suas orelhas e pernas, junto a uma descamação da pele. Logo em seguida, sua irmã, Mística, já apresentava os mesmos sintomas.

“Foram três meses tratando os sintomas das duas como sarna demodécica, segundo orientação do veterinário da época. Mesmo com antibióticos, banhos constantes e outras medicações, elas não melhoraram. Estranhei as unhas da Saray, que tinham crescido bastante, e questionei sobre a possibilidade de ser leishmaniose. O veterinário negou - segundo ele, unhas de leishmaniose eram maiores que aquilo”.

Camila insistiu na possibilidade do diagnóstico. Diante da negativa do médico veterinário, exigiu, ao menos, um encaminhamento para realizar o exame em outra clínica. Com o pedido em mãos, Camila levou Saray até o Instituto Municipal de Medicina Veterinária Jorge Vaitsman (CJV). O resultado não abriu margem para dúvidas: a leishmaniose era nítida. Duas semanas depois, Mística também receberia o diagnóstico positivo.

O diagnóstico tardio ao serem tratadas erroneamente como portadoras de outra doença escancara o despreparo de muitos médicos veterinários na capital do estado do Rio (Fotos: Camila Castro)

Em abril de 2022, dois meses após o diagnóstico das irmãs, nascia Maria Antônia, bebê de Camila. A chegada da menina trouxe a felicidade necessária em um lar que atravessava tempos tão turbulentos: Saray e Mística, infectadas pela leishmaniose há pelo menos cinco meses, ainda não haviam iniciado o tratamento com a droga leishmanicida ou até mesmo leishmanistáticos, que só seriam introduzidos em meados de junho do mesmo ano.

O tratamento nunca foi fácil, e se provava ainda mais emocionalmente impactante diante da pós-gravidez. Mesmo no puerpério, Camila aplicava a medicação em Saray e Mística, que precisavam da maior e mais cara dosagem da miltefosina, com a ajuda do marido. Apesar da contra-indicação do fabricante para a administração por parte de grávidas e puérperas, a tutora nunca foi informada sobre o risco por parte dos médicos veterinários.

“Eu estava no puerpério quando começamos a medicação, minha filha já tinha dois meses de nascida. Meu marido aplicou a maior parte do remédio, mas eu dividia com ele, e o meu emocional ficava muito abalado, porque nós víamos as cadelas que elas eram e o que elas tinham se tornado. Mas nada se comparou com o que passamos depois”.

O tratamento demorou para surtir qualquer tipo de efeito aparente. Lentamente, as feridas se fecharam e falhas na pelagem das irmãs deram espaço para novos folículos. O pelo que as cobria, no entanto, não fazia jus a pouca idade que tinham. Era opaco, sem vida, tal qual um cão idoso, embora ainda não tivessem sequer completado dois anos de idade.

O inchaço no abdome é o sintoma mais evidente da leishmaniose visceral, indicativo de problemas no fígado e baço (Fotos: Camila Castro)

Em meados de julho, uma unha infeccionada em uma das patas de Mística provocou uma queda na imunidade e, por consequência, a leishmaniose, que até então parecia controlada, voltou a atacar o organismo da cadela. Após sofrer de febre, aumento excessivo do baço, fígado comprometido e perda de peso - após inúmeras consultas veterinárias e medicações diferentes, Mística partiu no dia 30 de outubro.

Na noite anterior, Camila implorou que descansasse, se assim quisesse - que partisse em paz. Foi naquela manhã de segunda-feira, foi como se esperasse a família despertar para se despedir, que a cadela deu seu último suspiro.

“Maria Antônia está esses dias todos chamando por ela. A gente chega em casa esperando por ela, sempre pulando em cima da gente, e ela não está lá. Minha filha chama ‘Mística!’ e ela não está lá. Ela queria muito viver, e é muito difícil não ter ela aqui”, desabafa Camila.

Assim como a mãe, Maria Antônia também é apaixonada por seus irmãos de quatro patas (Foto: Camila Castro)

Prevenção e controle: como impedir a infecção

Uma vez que a doença não tem cura e seu tratamento é de alto custo, a melhor forma de combater a leishmaniose é por meio de métodos de prevenção e controle de infectados. Atualmente, os principais meios de se dão por meio de inseticidas e, em cães, com a utilização de coleiras antiparasitárias. Além disso, é importante controlar a reprodução desenfreada dos animais, uma vez que a doença também pode ser considerada uma infecção sexualmente transmissível (IST), como explica o médico veterinário André Luis Fonseca:

“O primeiro passo é saber se o animal tem leishmaniose por meio de exames clínicos de rotina. Se for positivo, não deixar que esses cães se reproduzam, para evitar a transmissão vertical a partir do tratamento correto do animal e uso de repelentes. Nós temos várias formas de repelir o mosquito: tem coleira, tem inseticida”.

No passado, o composto inseticida conhecido como DDT foi o mais utilizado para controle do inseto vetor, porém este foi banido em 2001 pela Confederação de Estocolmo, na Suécia, diante do alto potencial de toxicidade para a natureza. Além disso, a impermeabilização do ambiente pelos inseticidas se provava pouco eficaz, uma vez que o mosquito-palha se reproduz no acúmulo de matéria orgânica, que não é alcançado pelo inseticida em todas as suas camadas.

Hoje, o composto mais utilizado é a deltametrina, substância utilizada nas coleiras antiparasitárias e que age como repelente do mosquito. Seja em cães infectados ou não infectados, o encoleiramento previne que mosquitos se alimentem do cão, impedindo um avanço do ciclo de transmissão, como explica o médico, biólogo e doutor em parasitologia aplicada e pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Dr. Mauro Marzochi:

“O encoleiramento, além da ação inseticida, tem também ação de repelência. Assim, contribui para a diminuição da população de vetores infectados. Dessa forma, a coleira se torna uma estratégia importante no combate à doença”.

(Foto: Reprodução/CNPq)

Porém, assim como a miltefosina, a coleira antiparasitária também tem seu preço, podendo chegar a cerca de R$200, em exemplares que duram de 6 a 8 meses até que a troca se faça necessária. A conta pode ficar alta para quem tem muitos animais, como no caso de Christianne Duarte, presidente da ONG Quatro Patinhas. Tendo perdido três cães para a doença nos últimos anos, ela conta que, apesar de entender a importância da coleira, comprá-la para todos os seus outros cães é, muitas vezes, um desafio financeiro:

“Quando meu primeiro cão teve o diagnóstico positivo, foi uma surpresa muito grande. Assim que eu soube, fiquei em pânico, porque como presidente de uma ONG, tenho muitos animais e tinha que usar essa coleira, que é super cara. Agora, eu busco pôr a coleira em todos, mas tem épocas que fico muito apertada, e são muitos cães”.

Christianne perdeu Rim Tim Tim (centro) e Billy (à direita) para a leishmaniose visceral. (Foto: Christianne Duarte)

Outros, com condições financeiras mais estáveis, como Renata Maia, adotaram medidas drásticas para evitar a infecção não só sua e de sua família, mas também da região em que vive: “Eu usei a coleira no Guga e nos meus outros cães, e também usava um spray veterinário anti mosquito, mas eu sabia que o tempo dele era curto e limitado, então eu não deixava ele pisar na rua. Não deixava nenhum cachorro chegar perto dele, não entrava em casa com sapato, não mexia mais em cachorro na rua. Eu não queria trazer nada para ele, mas em nenhum momento eu tive medo de pegar em mim, pegar na minha família”.

Além da coleira, a administração de uma vacina contra a leishmaniose se faz necessária. No país, apenas a Leish-Tec, fabricada pela Ceva Saúde Animal, era reconhecida pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Meio Ambiente (Mapa), ainda que apenas para comercialização em clínicas particulares, não integrando o calendário vacinal de cães na esfera pública. No entanto, o imunizante foi retirado de circulação em maio de 2023, após seis lotes apresentarem desvios na composição. Confira a nota divulgada pela empresa:

“A Ceva Saúde Animal, prezando pela transparência na relação com seus parceiros e clientes, de maneira preventiva, comunica a suspensão temporária e imediata da comercialização de todos os lotes disponíveis da vacina Leish-Tec® enquanto analisamos internamente todos eles.
Foram identificados alguns desvios nos lotes 029/22, 037/22, 043/22, 044/22, 060/22, 004/23 que, em linha com orientações das autoridades, devem ser recolhidos imediatamente. A empresa está tomando ações internas para identificar as razões dos desvios e corrigir a situação o mais breve possível, esperando ter novas definições nas próximas semanas.
A Ceva seguirá tomando as medidas necessárias para continuar garantindo a qualidade de seus produtos e compromisso com seus clientes.”

Outro método importante no âmbito do controle da população de insetos vetores é a eliminação de focos de reprodução. Em grandes cidades, as principais medidas incluem um bom saneamento ambiental e urbano. Apesar de ser um mosquito, originalmente, com preferência por áreas rurais, o mosquito-palha se adaptou aos grandes centros urbanos ao utilizar a matéria orgânica presente em acúmulos de lixo para a reprodução.

Dessa forma, é necessária uma maior atuação das esferas de poder público quanto à limpeza urbana e conscientização da população a respeito de medidas preventivas e descarte de lixo. Não apenas isso, mas uma conscientização a respeito da própria doença, que passa despercebida diante de tantas outras, enquanto o número de cães infectados só aumenta. O pesquisador Mauro Marzochi enfatiza: é preciso investir na educação em saúde, estabelecendo um vínculo de parceria entre a população e o poder público. Confira:

Os grandes vilões por trás da expansão da Leishmania

Diante de tudo, uma grande questão permanece: quais as razões por trás do aumento exponencial no número de cães positivos para leishmaniose visceral? Quais mudanças provocaram a situação na qual a cidade se encontra atualmente?

Ainda em 1998, a Comissão de Defesa do Meio Ambiente da Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), então presidida pelo Deputado Estadual Carlos Minc, já associava o desmatamento e o desequilíbrio ambiental ao surgimento de casos de doenças como leishmaniose e malária.

“No caso de leishmaniose no Município do Rio de Janeiro a correlação é muito forte. Dos 251 casos registrados em 1997 em 26 regiões administrativas 180 o foram em 3 delas, a saber: Jacarepaguá, Bangú e Campo Grande - bairros da Zona Oeste que concentram amplamente o desmatamento, sobretudo na área do entorno do Parque Estadual da Pedra Branca”, relata o documento.

Além da leishmaniose, o documento também associava o desmatamento à possível expansão dos casos de malária (Fotos: Reprodução/Instituto Socioambiental)

Vale ressaltar que, originalmente, desde a década de 1970, conforme o pesquisador Dr. Mauro Marzochi, a leishmaniose visceral era especialmente prevalente nos bairros do entorno do Maciço da Pedra Branca, como Senador Camará e Realengo, além dos descritos no documento. Já na época, o desmatamento frente à carência de um saneamento ambiental já se destacava como fator de relevância.

O desequilíbrio ambiental provocado pela destruição de grandes florestas atinge o hábito de insetos como o mosquito-palha. Apesar do caráter rural, a redução do habitat natural do inseto diante do desmatamento força o vetor da leishmaniose a se deslocar para áreas cada vez mais urbanizadas, onde encontra condições favoráveis para a sobrevivência.

O fato também está atrelado ao crescimento da urbanização das cidades, uma vez que a expansão do perímetro urbano de grande metrópoles resulta em uma aproximação da população a áreas antes consideradas intocadas ou periurbanas, como explica Aline Fagundes:

“À medida que você tem uma grande mudança ambiental, como desmatamentos, construção de condomínios, invasão de áreas florestais para que as pessoas fiquem mais próximas da mata individual, facilita com que haja uma maior circulação de vetores e, por sua vez, o aparecimento de mais mosquitos que irão picar um hospedeiro favorável (no caso, o cão) que vai disseminar a doença. Quando se desmata para a construção em áreas próximas a florestas, isso facilita com que as pessoas passem a ter mais contato com os insetos”

O fato também é explicitado pelo efeito de borda, fenômeno ecológico que ocorre na interface entre dois ecossistemas diferentes. Nesses locais, as condições ambientais são diferentes das encontradas em cada um dos ecossistemas vizinhos. O mesmo vale para a leishmaniose e seu inseto vetor. À medida em que há um efeito de borda entre áreas florestais e regiões desmatadas, o inseto vetor encontra uma ambientação favorável à reprodução em função do desequilíbrio ambiental e ecológico. Confira com o pesquisador Mauro Marzochi:

O fato é observado na prática. Dados do MapBiomas Alerta apontam para um aumento perigoso na área desmatada no estado do Rio de Janeiro nos últimos dois anos. Em 2021, foram cerca de 160 hectares de Mata Atlântica desmatados no estado, dos quais 68,2% se deram por meio da agropecuária e 32% por conta da expansão urbana.

Em 2022, os números quase triplicaram: foram 495 hectares de floresta desmatada, o equivalente a quase 600 campos de futebol - o terceiro maior índice na região Sudeste do país. Ainda segundo o MapBiomas alerta, a capital do estado já soma cerca de 13 hectares de área de Mata Atlântica desmatada nos últimos quatro anos - o equivalente a 16 campos de futebol, um total inteiramente causado pela expansão urbana.

Além do desequilíbrio ecológico, é possível citar também as graves mudanças climáticas promovidas pelo desmatamento e pela má gestão ambiental das nações mundo afora. À medida que há um crescimento gradativo da emissão de gases que contribuem para o efeito estufa na Terra, o aumento da temperatura do planeta também afeta os ciclos biológicos dos ecossistemas. Se antes as estações do ano ainda eram bem definidas, as condições climáticas atuais - em que se sente viver um eterno verão - favorecem a reprodução de insetos como o mosquito-palha durante o ano inteiro, e não apenas no verão de fato.

Outro ponto importante é o extermínio de espécies que atuam como predadoras de vetores de doenças como a leishmaniose e a dengue. A má administração de inseticidas como o DDT eleva insetos como o mosquito-palha ao topo da cadeia alimentar - especialmente nas grandes cidades, onde a presença dos animais é sinônimo de sujeira e descaso.

“Nós temos uma tendência a aumentar a doença transmitida por vetores, por insetos, porque estamos alterando completamente o meio ambiente. O mosquito hoje está no topo da cadeia alimentar. O que mata mosquito na sua casa? Antigamente, as casas tinham pererecas no banheiro, lagartixas, teias de aranha, então o mosquito fazia parte de um equilíbrio dinâmico. Nós acabamos com isso, combatemos o predador natural do vetor. Inseticida mata muito bem o mosquito, mata o flebótomo que transmite a leishmaniose, só que ele também está matando aranhas que predam o mosquito. Então, cada vez mais, a nossa intervenção piora a situação”, explica André Luis Fonseca, que também é especialista em doenças tropicais.

Gestão: o papel do poder público no combate ao calazar

Diante de todo o exposto, uma questão: qual o papel do poder público no combate à leishmaniose canina, e de que forma ele tem atuado para reduzir a transmissão e conscientizar a população? A triste realidade é que, fazendo jus ao título de “doença tropical negligenciada”, pouco se ouve a respeito da doença na cidade. Ainda que o número de diagnósticos positivos para cães tenha aumentado significativamente nos últimos cinco anos, sem previsão de diminuir, campanhas de conscientização ativas não parecem ser o foco dos órgãos competentes até o momento.

Em páginas online como as da Secretaria Municipal de Saúde e Vigilância Sanitária, as únicas informações claras e acessíveis são relacionadas à notificação de casos suspeitos da doença. A leishmaniose parece receber tanta atenção quanto a esporotricose, doença fúngica que acomete principalmente gatos e também é transmissível a humanos, com uma enorme diferença: a esporotricose é curável; a leishmaniose, não.

A ausência de uma campanha de conscientização e prevenção ativa de fato, como é realizado anualmente com doenças com a Dengue e a Raiva, contribui para o aumento do número de casos de leishmaniose e proliferação do inseto vetor, uma vez que uma população mantida na ignorância é incapaz de combater a doença. A falta de conscientização é observada na prática: ao abordar cidadãos quanto à doença, a resposta é quase sempre a mesma. “Não conheço”, ou até mesmo “Nunca ouvi falar”.

O mesmo vale para Renata, Tatiana, Christianne e Camila - todas as quatro tutoras afirmam que não conheciam (como no caso de Renata e Guga) ou conheciam pouco sobre a leishmaniose antes de seus cães serem acometidos e não tinham dimensão do que seria lidar com ela. Não apenas isso, mas quando tiveram de enfrentá-la, encontraram pouco ou nenhum apoio do poder público.

“É muito importante conscientizar, porque as pessoas vão continuar achando que não tem nada distante, que não vai acontecer com a sua família - e está acontecendo. Já está acontecendo em todos os bairros do Rio de Janeiro. A gente acha que não vai acontecer, mas está lá, bem do nosso lado”, conta Christianne Duarte, que perdeu três cães para a leishmaniose.

O fato é especialmente preocupante ao relembrar que o calazar é, de fato, uma zoonose - uma doença transmissível entre humanos e animais, que pode levar à morte de ambos se não tratada. Ainda que o tratamento humano seja realizado gratuitamente por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), o tratamento canino ainda é uma realidade distante para a maioria dos tutores de cães.

Quanto a medidas públicas, mesmo que a única vacina reconhecida tenha sido retirada de circulação, a baixa cobertura vacinal pode ser considerada como um dos empecilhos que dificultavam sua integração no esquema vacinal de animais domésticos da Prefeitura do Rio. Isso também se dá pelo fato de que a leishmaniose não é oficialmente considerada uma questão de saúde pública.

“O que impede a vacina de se tornar uma medida de saúde pública são estudos científicos mais bem conduzidos, que realmente demonstrem que ela tenha um grande potencial de eficácia”, explica Mauro Marzochi.

O veterinário André Luis Fonseca também atribui a dificuldade do combate à falta de capacitação dos profissionais da medicina veterinária - especialmente, tratando-se de diretrizes do próprio Conselho Regional de Medicina Veterinária (CRMV). Segundo ele, a desinformação estimula a prática da eutanásia em detrimento do tratamento medicamentoso - uma prática que não resolve o problema de fato.

“Geralmente, nas cidades onde a leishmaniose aparece, a primeira atitude é a eutanásia. Começam a matar e, depois de um tempo, veem que não funciona e só então param de matar. E como a eutanásia não está resolvendo, passam a considerar o tratamento, a vacina; você começa a ter essa evolução do pensamento. Mas o Conselho ainda é obtuso, eles têm conhecimento técnico, mas não têm um conhecimento de fato do manuseio da doença”, defende André.

Ainda assim, o tratamento não é o padrão de controle defendido por todos. A bióloga Aline Fagundes argumenta que a medicação de controle não é uma opção eficaz por conta do grau de adesão em função do valor e, principalmente, porque apenas diminui a taxa parasitária no organismo, sem eliminá-la de fato.

A grande e mais eficaz alternativa é a conscientização sobre o uso de coleiras inseticidas em cães como método de prevenção da infecção. Christianne Duarte, presidente da ONG Quatro Patinhas, considera que o encoleiramento dos cães com coleiras inseticidas é uma medida de prevenção mais eficaz e aplicável em programas de saúde pública:

“Acho que o que se pode fazer para controlar a leishmaniose é dar o conhecimento, e o mais importante: o governo tem que fornecer meios para a população combater isso. Tem que dar as coleiras, criar um projeto do governo. Tem que conversar, diagnosticar nas comunidades, enviar agentes não para matar o animal, mas para cuidar, evitar que se torne um vetor”.

Ainda que se realize campanhas de combate à doença, outros defendem que estas devem ser realizadas com cuidado, a fim de não escandalizar a população e incentivar práticas como o abandono de animais e, até mesmo, a eutanásia. É o caso da Tatiana:

“É necessário a conscientização, mas ela tem que ser muito bem feita para não causar pânico e assustar. As pessoas já maltratam e abandonam porque o cachorro late ou só porque o gato fez um cocô no lugar errado. Tem que ver muito bem como fazer. Agora, não adianta conscientizar e não dar o suporte, porque estamos falando de saúde. Enquanto o governo está fingindo que não está vendo, ele não tem que fazer nada”, desabafa.

Perspectivas de um futuro saudável para fiéis companheiros

Na iminência do desafio que o calazar canino impõe aos companheiros de quatro patas, conclui-se que a batalha não é apenas contra um parasita, mas também contra as barreiras que limitam o acesso ao tratamento. A inacessibilidade põe em xeque não apenas a saúde dos cães, mas também a capacidade de suas famílias humanas em oferecer o cuidado necessário diante de um tratamento inacessível.

Nesta jornada pela saúde canina, a prevenção se mostra a chave para um futuro, dentro do possível, livre da doença, em detrimento de métodos que não oferecem uma solução a longo prazo como a eutanásia. Ao fortalecer a defesa desde cedo, implementando estratégias eficazes com o estímulo ao encoleiramento e o desenvolvimento de uma vacina de fato, podemos vislumbrar um futuro no qual o impacto da doença seja minimizado.

Além da saúde física dos cães, a prevalência do calazar canino exerce um impacto emocional significativo sobre os tutores desses animais. A incerteza e a angústia associadas ao diagnóstico e ao tratamento inacessível ampliam o estresse psicológico das famílias, que muitas vezes se veem impotentes diante da condição de seus companheiros peludos. A constante preocupação com a possibilidade de infecção, somada à falta de recursos para oferecer o tratamento adequado, cria um ambiente emocionalmente desafiador para os tutores, afetando negativamente sua saúde mental.

“Não é uma questão apenas de saúde. Mesmo que fosse só do animal, é uma vida, não é? Os animais estão dentro das casas das pessoas, convivem conosco. Mas mesmo que não transmitisse para o ser humano, a partir do momento em que se tem um crescimento de mortes, isso abala o emocional das pessoas. Isso vai gerar um desequilíbrio no emocional em muita gente, porque os animais são suportes emocionais para muitas pessoas. Se você não tiver valorização dos animais por parte da saúde pública, isso vai gerar um grande impacto”, opina Renata Maia, que ainda não sabe conviver com a partida de Guga em junho de 2023.

Peppa.

Mesmo após todos esses meses, ainda não me conformo com sua ausência. Ela está presente em meus sonhos mais felizes e nas manhãs mais deprimentes. Entro e saio de casa todos os dias pensando na rotina que criei para nós. Percorro as ruas vazias de um bairro pacato, enquanto reconto os passos que demos todos os dias das noites de verão.

Eu enxergo agora: os estágios do luto que não fui capaz de reconhecer enquanto ainda a tinha em meus braços. Como minha autoproteção estúpida, ao viver os meses como se tudo estivesse bem, se configura perfeitamente em um estágio de negação. A negação em reconhecer a voz em meus pensamentos que em breve tudo teria seu fim.

Como a raiva se fez presente, forte e odiosa, todas as vezes que ouvi que seu estado não teria cura. Como estávamos vivendo de tempo emprestado enquanto o destino entregava o seu pior. Quantas vezes não discuti com minha própria família enquanto me recusava a reconhecer o que estava claro, diante de nossos olhos?

A barganha foi um ato nascido do mais puro desespero. Observá-la se deteriorando, dia após dia, enquanto rezava por dias melhores. Enquanto acreditava, piamente, que sua condição sofreria melhoras. Outros batalharam anos a fio, por que não ela? Não teríamos tanto azar assim, não?

Tivemos. A depressão é como um peso em minha nuca. Uma sensação constante de angústia e ansiedade acorrentada a mim; minando meu desempenho, meu trabalho e, especialmente, minhas noites sozinha. Eternamente assombrada por tempos que não voltam mais.

Ainda ouço seu latido na calada da noite. Seus uivos, uma forte indignação quando saíamos e tínhamos a audácia de não levá-la conosco. Suas unhas fortes e o peso de seu corpo sobre o meu todas as vezes em que a faculdade me fez chegar tarde em casa.

É estranho não enxergá-la me receber em casa todos os dias. A ausência do focinho gelado apoiado em meu joelho cada vez que me sentei para uma refeição. Não ter seu corpo musculoso e compacto aninhado em meu colo cada vez que me sento no sofá da copa. Dela — os sofás sempre foram dela. E agora estão tão completamente vazios.

Às vezes me pergunto se a aceitação um dia chegará. Em que momento a irreparável morte deixará de ser uma lembrança de dias ruins, mas o saudosismo do que vivemos juntas. Quando deixarei de lembrar do que passamos com um sorriso no rosto, em vez de lágrimas nos olhos?

Não sei se quero. Ainda que me arraste, me derrube e me ataque, é como se a tristeza fosse a última chama viva de sua passagem — dentro de mim. Um pequeno resquício de sua alma que me acompanha todos os dias. Enquanto luto; luto todos os dias para que outros não vivam o que vivemos. Ainda que suas histórias me destruam sempre que me lembro dela.

Por Larissa Celano Gagliano Bianco. Esta grande reportagem multimídia (GRM) é fruto de um trabalho de conclusão de curso para a obtenção do título de Bacharel em Jornalismo. Orientado pela Prof.ª Dr.ª Maristela Fittipaldi. Defendido em 5 de dezembro de 2023.

Contato: bianco.larissa@gmail.com | LinkedIn

(Capa: Ray Wilson/Liverpool School of Tropical Medicine)