Loading

Como retomamos as rédeas do controlo de vetores da malária? Os cientistas do projeto BOHEMIA exploram uma estratégia de controlo de vetores inovadora, com o fim de levarem a melhor aos mosquitos

Português - Inglês

por Murchana Roychoudhury

Em 2021, a fêmea do mosquito Anopheles, um vetor potente do parasita da malária, provocou 619 000 vítimas mortais.

A região africana da OMS registou 96% de mortes, o que traça uma imagem sombria das desigualdades na saúde.

Fonte: World Malaria Report, 2022

O papel do controlo de vetores não pode ser subestimado nos êxitos alcançados até agora pela comunidade da malária, contribuindo para uma descida constante do número de mortes causadas pela doença.

A ideia subjacente é simples – ao controlarmos a população dos mosquitos que propagam a malária poderemos reduzir a transmissão da doença.

Do infame uso do diclorodifeniltricloroetano (DDT), que conduziu ao crescimento do movimento ambientalista nos Estados Unidos na década de 1960, às atuais campanhas de utilização de mosquiteiros tratados com inseticida (ITN), as estratégias de controlo de vetores têm-se erigido como um elemento fundamental do controlo e erradicação da malária.

Entre 2000 e 2015, os ITN preveniram 68% de casos de malária e a pulverização residual dentro das casas (IRS) ajudou a evitar 13% de casos adicionais. - World Malaria Report, 2022

Contudo, os mosquitos estão a desenvolver uma resistência aos inseticidas, nomeadamente os piretroides, um componente extensivamente utilizado nos ITN e nas IRS. Além do mais, as ferramentas de controlo de vetores atuais só têm capacidade para atingirem os mosquitos em espaços interiores.

Isto vem sublinhar a urgência de reforçar o arsenal de combate à malária através da exploração de novas estratégias de controlo de vetores.

Ao contra-ataque

A ivermectina é uma dessas ferramentas com um grande potencial, que mostrou uma atividade promissora contra os mosquitos Anopheles em ensaios aleatorizados controlados in vitro.

Apesar de toda a controvérsia negativa associada ao fármaco durante a pandemia de covid-19, este medicamento laureado com um prémio Nobel é um ator destacável nas doenças tropicais negligenciadas. É vastamente utilizado no tratamento da sarna, da “cegueira dos rios” e da filaríase linfática, e conta com um perfil de segurança consolidado.

Perante a necessidade evidente de novas ferramentas de controlo de vetores, os investigadores da ISGlobal Carlos Chaccour e Regina Rabinovich puseram-se a explorar o potencial da ivermectina para reduzir a transmissão da malária e deram início ao projeto BOHEMIA (pela sua sigla em inglês – Broad One Health Endectocide-based Malaria Intervention in Africa), uma administração massiva de medicamentos (MDA). Para tal, confiaram nos conhecimentos de Marta Maia e na capacidade de implementação de Caroline Kiuru.

Por um lado, os trabalhadores de campo vão porta a porta nos grupos designados, distribuindo o fármaco a ser testado na MDA. Simultaneamente, a equipa de entomologistas de BOHEMIA dedica-se a recolher mosquitos das casas das pessoas e das zonas circundantes. Estudam o impacto da MDA de ivermectina nas populações que são vetor da malária e a correspondente atividade de transmissão.

Munida de armadilhas luminosas, aspiradores com bateria e conchas, a equipa recolhe mosquitos adultos e larvas.

Vigília noturna: recolha de mosquitos que procuram hospedeiros enquanto os residentes estão nas suas casas a dormir

Os agregados familiares de cada grupo do estudo são mapeados. Uma vez obtido o respetivo consentimento dos residentes, os trabalhadores de campo recolhem mosquitos adultos do interior das casas, enquanto os residentes descansam confortavelmente protegidos por mosquiteiros tratados com inseticida. Montam armadilhas luminosas alimentadas com bateria (armadilhas luminosas CDC) que apanham os mosquitos que são atraídos para as pessoas que dormem protegidas pelos mosquiteiros.

O nosso trabalho começa quando toda a aldeia dorme, e só descansamos quando as pessoas se levantam para começarem o seu dia. – Miguel Gerson, Quénia

Estes mosquitos são recolhidos para compilar a seguinte informação:

  • composição de espécies e densidades do vetor
  • estado da infeção da malária
  • estrutura da faixa etária da população através da taxa de paridade
  • tamanho dos adultos

Apanhar os mosquitos pousados nas paredes

De manhã muito cedo, entre as 5:00 e as 7:00, os trabalhadores de campo procuram mosquitos adultos pousados nas paredes dos interiores das casas.

Os mosquitos são apanhados com aspiradores alimentados com bateria. O objetivo é acumular dados essenciais sobre a fonte da sua ração de sangue, quanto tempo é que demoram a pôr ovos após se alimentarem de sangue, e durante quanto tempo sobrevivem.

Os tantas vezes “descurados” espaços exteriores

As medidas de controlo de vetores atuais, como os ITN e as IRS, têm-se focado principalmente em atingir as populações de mosquitos dos espaços interiores. No entanto, com o passar do tempo, os mosquitos responsáveis pela transmissão da malária estão-se a adaptar e começam a optar por picar nos espaços exteriores.

Portanto, sem poupar esforços, a equipa de entomologia recolhe também mosquitos do exterior, em zonas onde há animais e choças, e deposita-os no insetário para um estudo posterior.

Uma paisagem de larvas

A equipa de entomologia não tem medo de pântanos, poças, charcos, e qualquer outro lugar onde os culpados da malária possam procriar.

No insetário, criam estas larvas até à fase adulta e conduzem testes que visam monitorizar a resistência aos inseticidas e a bioeficácia.

Source: World Health Organization, 2020

Porquê?

No insetário, criam estas larvas até à fase adulta e conduzem testes que visam monitorizar a resistência aos inseticidas e a bioeficácia.

No insetário, revela-se a vida secreta dos mosquitos...

De todas as formas e feitios

Desde o início do projeto, a equipa de entomologia recolheu mais de 138 000 mosquitos.

Das aproximadamente 530 espécies de mosquitos Anopheles, só 30-40 são transmissoras de malária na natureza. Em Moçambique, as espécies mais comuns entre os vetores da malária são Anopheles funestus s.l e Anopheles gambiae s.l.

É interessante observar os contrastes significativos patentes nas nossas experiências em duas envolventes diferentes. Durante a época das chuvas em Moçambique, podemos conseguir um máximo de 2000 mosquitos por casa, cada noite. No Quénia, o nosso máximo é 110. Além do mais, o Quénia apresenta uma grande diversidade de espécies de vetores secundários, quando comparando com Moçambique. – Caroline Kiuru, projeto BOHEMIA

Além de ajudar a dar resposta às perguntas feitas pela investigação de BOHEMIA, a equipa de entomologia também colaborou em programas de controlo de vetores nas zonas do estudo, para compilar dados que possam contribuir para a elaboração de perfis de resistência aos inseticidas. «Com estes dados, os programas de controlo de vetores da malária podem compreender os vetores das suas zonas, para assim tomarem decisões informadas sobre qual a ferramenta mais adequada aos seus vetores locais», explica Kiuru.

Uma reportagem fotográfica anterior, intitulada «Um insetário junto ao rio Zambeze» oferece uma visão pormenorizada da investigação levada a cabo no insetário BOHEMIA.

A chegada de uma espécie invasora

Em 10 de fevereiro de 2023, o Kenya Medical Research Institute (KEMRI), um parceiro na implementação do projeto BOHEMIA, publicou um sumário de provas que confirma a presença de Anopheles stephensi no país.

A espécie invasora ganhou notoriedade por transmitir malária Plasmodium falciparum e Plasmodium vivax. Prospera tanto em ambientes urbanos como rurais, e apresenta resistência a uma série de inseticidas. Num período de poucos anos, esta espécie invasora tem-se expandido rapidamente por novas zonas de África, representando um risco grave para o progresso atingido ao longo dos anos.

À medida que convergem novas ameaças, as ferramentas tradicionais tornam-se menos eficazes, pelo que hoje, mais do que nunca, temos de priorizar os esforços científicos para encontrarmos ferramentas e estratégias contra a malária inovadoras e inéditas. Temos de nos antecipar e superar os parasitas da malária, em constante evolução, assim como os seus vetores.

Para mais informações, visite o sítio web do projeto BOHEMIA e subscreva o boletim informativo.

#BOHEMIAproject