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Reconstruindo vínculos: o diálogo como chave para a reparação familiar MARIA CLARA ESTRÊLA E NATHALIA AMARAL

Viver em sociedade é se relacionar (mesmo que involuntariamente) com o outro. Até na “não-relação” existe uma relação. Viver em coletividade pressupõe, antes de tudo, o respeito pelo individual e o reconhecimento de si mesmo a partir das semelhanças e diferenças com o outro. É através disso que se cria a relação de pertencimento.

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Mas e quando o pertencimento deixa de existir? E quando as relações se tornam tão fragilizadas a ponto de simplesmente se desfazerem? Como você preserva os vínculos que cria? O caminho é atribuir culpas e punições quando eles são desfeitos? Ou buscar o diálogo para reparar danos e ir além da compensação pelo malfeito praticado?

Dizem os sábios que o diálogo constrói pontes e que a sociedade tem se preocupado mais em levantar muros do que de fato buscar alternativas que reforcem o senso de coletividade. Na falta do diálogo, pontes se quebram e onde havia uma unidade, sobra somente o silêncio. Se não há diálogo e escuta, há exclusão.

É natural de todo ser humano afastar aquilo que considera ruim para si mesmo. Desfazer vínculos ou restringi-los parece mais simples que analisar a situação e procurar meios de repará-la. Romper é um caminho mais curto que restaurar. Restaurar pressupõe olhar para si mesmo e para o outro. Numa sociedade em que tudo parece rápido demais e inconstante demais, o olhar e o escutar também parecem desvanecer.

Para quem está em processo de construção da própria identidade, esses vínculos são ainda mais importantes. Crescer em um ambiente instável, caótico ou negligente pode trazer consequência irreparáveis para uma criança. Por isso, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), instrumento que coloca essa população como sujeitos de direito com proteção e garantias específicas, determina que nenhuma criança ou adolescente deve ser objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

A ausência dessa proteção e cuidado leva a uma realidade aterradora. Em Teresina, há 180 crianças ou adolescentes acolhidos em dez abrigos provisórios e duas em acolhimento familiar. Tratam-se de pessoas, ainda no início da vida, necessitadas do cuidado de terceiros porque seus vínculos primordiais (família nuclear e família extensa) foram quebrados de alguma forma. Os dados são das Promotorias da Infância e Juventude do Ministério Público do Piauí.

Um desses abrigos é a Casa de Punaré. Fundada em 2001, ela fica localizada no bairro São Joaquim, zona Norte de Teresina, e atualmente abriga seis adolescentes, com idades entre 12 e 18 anos, mas tem capacidade para receber até 10. De acordo com o coordenador, Júlio Rodrigues, o abrigo foi fundado com o objetivo de criar um ambiente seguro e acolhedor para crianças com vínculos rompidos e que estão sob medida de proteção prevista pelo ECA.

Foto: Assis Fernandes/O Dia

“O acolhimento institucional é previsto no artigo 101 do ECA e é um acolhimento que deve acontecer de forma excepcional e provisória. O adolescente não deve permanecer no abrigo muito tempo porque nós sabemos que estar fora da família, do contexto familiar e comunitário, pode trazer alguns traumas. Então, nós entendemos que o trabalho deve ser feito o mais rápido possível para que ele possa retornar ao convívio familiar”, explica o coordenador Júlio Rodrigues.

Entre os motivos que levam os adolescentes ao acolhimento na Casa de Punaré, segundo o coordenador, estão: restrição do acesso à escola, envolvimento com drogas ou com a criminalidade, ameaças de morte ou algum tipo de transtorno comportamental. São jovens com perfis variados e histórias de vida diferentes, por isso, o acompanhamento dado a cada um deles é diferenciado e leva em consideração a sua história de vida.

“Esse acolhimento diferenciado vai fazendo com que eles se sintam bem e possam ir mudando realmente a história deles. A nossa unidade é uma unidade de adaptação constante, porque quando chega um adolescente, a unidade precisa se adaptar. Se amanhã chegar outro, tem que se adaptar novamente. Essa adaptação vai gerando, aliada com esse acolhimento, respeito, diálogo e a gente vai vendo grandes efeitos na vida desses adolescentes. A gente não está aqui prestando um favor, mas realmente desenvolvendo um serviço que é direito de cada adolescente”, enfatiza.

Foto: Assis Fernandes/O Dia

Um desses adolescentes que teve a sua vida transformada a partir do acolhimento na Casa de Punaré é Bernardo*, de 17 anos. Assim como os outros adolescentes acolhidos na casa, Bernardo tem uma rotina de afazeres que inclui as refeições, horário para estudo, tempo livre para brincar, atividades na biblioteca, intercalados com outras atividades para desenvolver a autonomia, como cuidar das próprias roupas e da cama.

“Aqui, eu tenho ‘mais mente’ para fazer as coisas. Tenho mais entendimento, penso antes de fazer. Aqui, eu aprendi que nós devemos agarrar todas as oportunidades que eles nos dão, porque tem curso, tem escola, acompanhamento. E para gente estar se sentindo muito bem, a gente tem que ir à escola. Também tem o educador para conversar”, afirma Bernardo*.

O processo de cura

Não são poucas as situações que levam uma criança ou adolescente a serem institucionalizados. Os casos mais comuns são os de negligência familiar que englobam crianças com problemas de saúde graves, que estão em situação de drogadição e/ou em situação de rua porque o pai e a mãe não dão assistência ou abandonam.

Quem explica é a promotora de Justiça, Joselisse Nunes, coordenadora do CAODIJ, o Centro de Apoio Operacional de Defesa da Infância e da Juventude, do Ministério Público do Piauí.

Os cuidados necessários que o pai e a mãe precisam ter com uma criança e um adolescente, que são vistos pela rede de proteção como totalmente dissonantes daquilo minimamente desejados, é o que chamamos de negligência. A gente tenta fazer com que aquele pai e aquela mãe possam ser orientados pelo poder público através dos CREAS [Centros de Referência Especializado em Assistência Social] para que eles retomem a vida deles de uma forma que possam dar proteção a estes filho", diz a promotora joselisse nunes.

Caso a família não se adeque ao que o poder público prevê, o MP busca o acolhimento na família extensa. Se ela também não tiver condições favoráveis, a criança ou adolescente vai para a instituição de acolhimento. A institucionalização da criança ou do adolescente, diz a promotora Joselisse, é a última etapa quando todas as outras possibilidades são esgotadas.

“A gente precisa, primeiro, preservar os vínculos familiares, sejam eles na família nuclear ou na família extensa. A gente busca alguém da família para ficar com essa criança na impossibilidade de ficar com o pai e a mãe. Quando não encontramos acolhimento em nenhuma das duas, partimos para a institucionalização ou para a colocação em uma família acolhedora”, explica a promotora.

Foto: Assis Fernandes/O Dia

É neste ponto que se inicia o processo judicial no qual o Ministério Público pede ao juiz que seja feito o acolhimento institucional da criança ou adolescente. A partir da determinação da Justiça é que os pais são chamados a integrar o processo e fazer sua defesa. São feitas avaliações pelas equipes técnicas da Vara da Infância e Juventude, e da instituição de acolhimento. Os relatórios são encaminhados ao MP e ao Poder Judiciário, que avaliam se é o caso de a criança voltar para casa ou ser destituído o poder familiar.

“Se for destituído o poder familiar, o juiz determina a inclusão daquela criança ou adolescente no Sistema Nacional de Adoção através de uma ação específica”, finaliza a promotora Joselisse Nunes.

O Ministério Público também atua para o acolhimento de crianças e adolescentes vítimas de agressões físicas e de violência sexual, muito embora os casos de negligência sejam mais comuns.

Vale lembrar que o Conselho Tutelar também é uma das frentes atuantes neste processo. Uma vez que o Conselho recebe alguma denúncia e atesta que aquela criança está em situação de risco, ele aciona o Ministério Público para dar início a todo o processo. Foi por meio do Conselho Tutelar que o jovem Bernardo*, 17 anos, chegou à Casa de Punaré.

O adolescente, que morava com a avó, passou a residir com os tios em um bairro na zona Sul de Teresina, após a matriarca sofrer um AVC. Desde então, os conflitos familiares constantes e as dificuldades financeiras contribuíram para que Bernardo* precisasse sair de casa e ser acolhido na Casa de Punaré, onde está há oito meses. Apesar de sentir falta das irmãs e da avó, Bernardo disse que o abrigo foi o “melhor lugar” para onde poderia ter ido.

Assim como Bernardo*, muitas outras crianças e adolescentes que tiveram os vínculos rompidos com os seus núcleos familiares, precisam viver com a incerteza sobre o futuro. São crianças em situação de vulnerabilidade social onde falta o principal: proteção e cuidado. As questões que ficam são: o que faz um vínculo se quebrar a ponto de o afastamento ser a única solução? Fazer justiça é somente seguir rompendo relações com a aplicação de penas e o enclausuramento? Ou há algum outro caminho?

O coordenador da Casa de Punaré, Júlio Rodrigues, explica que cerca de 70% dos adolescentes acolhidos na Casa de Punaré retornam às suas famílias após a permanência no abrigo. Por ser um abrigo provisório para jovens sob medida de proteção, os adolescentes acolhidos recebem acompanhamento para que possam retornar ao convívio familiar. Nesse ínterim, as famílias também recebem apoio para conseguir driblar as dificuldades que levaram à separação.

Foto: Assis Fernandes/O Dia

No tempo em que ficam na casa, os adolescentes recebem um acompanhamento multiprofissional, com ajuda de psicólogos, pedagogos e assistentes sociais, que irá ajudar no seu desenvolvimento pessoal, facilitando assim não só a reinserção no convívio familiar, através da reconstrução dos vínculos rompidos, mas também dando bases para um futuro ingresso no mercado de trabalho.

“Vamos compreender a história dele, ver o que é que levou ele a essa realidade, para poder ofertar opções. Vamos orientar ele profissionalmente, trabalhar com ele a autonomia. Porque eles chegam aqui sem saber como lavar sua roupa, como preparar uma comida, e muitos desses adolescentes já vão completar 18 anos. Por isso, precisamos prepará-los para a vida adulta também, para que eles sintam que, mesmo estando fora da família, não estão fora do mundo. Ele precisa aprender a conviver, a ter uma vida autônoma e a se comportar nos espaços públicos”, destaca Júlio Rodrigues.

Um dos 18 profissionais que atuam na Casa de Punaré é o psicólogo Marcos Britto. Segundo ele, esse acompanhamento multiprofissional é de suma importância para tratar as necessidades de cada adolescente atendido, pois muitos chegam a casa com dificuldades de comunicação pela fragilização dos vínculos familiares e, através da escuta, passam a conseguir expressar as suas emoções e sentimentos.

Foto: Assis Fernandes/O Dia

“O objetivo do profissional de psicologia no abrigo não é fazer o acompanhamento psicoterapêutico. A gente tenta dar o suporte emocional, quando eles não estão bem fazemos a escuta, de como estão, de como estão as emoções, de como está a relação com a família. E na outra ponta a gente tenta trazer a família para fazer a reconstrução desses vínculos. Quando o adolescente chega aqui ele já está como vínculo prejudicado e fragilizado com a família e nosso trabalho é fazer a reconstrução”, afirma o psicólogo Marcos Britto.

Além da dificuldade de expressar as emoções, muitos dos jovens atendidos no abrigo chegam até lá em defasagem escolar e sequer frequentam a escola. Por isso, a negligência educacional também é um fator considerado para que a justiça decida por retirar aquela criança do convívio familiar. No abrigo, a equipe também deve estar preparada para conseguir facilitar a aprendizagem e auxiliar no desenvolvimento educacional de cada um.

“Todos os adolescentes que chegam aqui, chegam fora da escola, não estão estudando. A evasão escolar é de praticamente 100%. Hoje, na unidade, todos estão estudando, estão inseridos em cursos, têm oficinas dentro da unidade. Meu trabalho é exatamente isso: reconstruir um vínculo social. Para isso, realizamos atividades intergeracionais, visitamos outras unidades de acolhimento com eles, fazendo um trabalho diferenciado pra que eles possam conhecer outros espaços e dentro da unidade a gente tem toda essa dinâmica, que é lidar com a parte educacional e social dos adolescentes”, explica Jociane Coutinho, pedagoga da Casa de Punaré.

Esse acompanhamento é primordial no “processo de cura” de cada jovem atendido, pois, é a partir dele que esses adolescentes conseguem ver para além do círculo social no qual estavam inseridos, muitas vezes enxergando oportunidades que estavam ocultas e que, por negligência, não conseguiriam ser alcançadas sem proteção e cuidado. O exemplo disso é o caso do Bernardo*. Estar na Casa de Punaré fez com que o jovem enxergasse para além das paredes da sua própria vida. Hoje, quando perguntado sobre os planos pro futuro, ele responde sem titubear: o seu sonho é ser cabeleireiro.

Muito ainda há de ser feito para restaurar o vínculo familiar perdido. No entanto, o jovem não culpa a família pelo que aconteceu. Apesar disso, não pretende voltar para a casa dos tios após sair do abrigo. A meta de vida agora é aprender a caminhar com os próprios pés.

Quero terminar meus estudos e fazer um curso de cabeleireiro, porque é o que eu gosto de fazer, e montar um salão para mim. Minha família são meus tios e eles não estão bem financeiramente, prefiro não depender mais deles pra evitar que aconteça o que já aconteceu”, finaliza bernardo*.
Fotos: Assis Fernandes/O Dia

Por isso, a preservação do vínculo familiar é o principal foco da rede de apoio a essas crianças e adolescentes e o acolhimento institucional é excepcional. Segundo o secretário municipal de Cidadania e Assistência Social (Semcaspi), Allan Cavalcante, em Teresina não existe uma demanda reprimida de crianças a serem acolhidas provisoriamente em instituições de acolhimento. Além da Casa de Punaré, a Semcaspi também dispõe de outros equipamentos voltados a atender pessoas em situação de vulnerabilidade social.

“Uma coisa maravilhosa que a gente trabalha é o serviço de convivência. Tínhamos uma meta de ter em torno de mil atendimentos e, hoje, temos 2 mil pessoas sendo atendidas pelo serviço de convivência em parceria com entidades filantrópicas como a ASA e a Funaci. Esse serviço faz com que o adolescente saia da ociosidade e participe de atividades de empoderamento, de atividade de lazer, qualificação profissional, envolvendo políticas de assistência e outras políticas de forma transversal”, explica.

“Se a justiça quer restaurar vínculos, ela tem que focar mais nas pessoas”

“Vivemos em tempos líquidos onde nada é feito para durar”. A frase do sociólogo polonês Zygmunt Bauman traduz uma época de incertezas na qual as relações humanas parecem cada vez mais fragilizadas e fadadas à superficialidade Em tempos de aceleração (e constante mudança) da vida, a forma como as pessoas lidam umas com as outras acaba sendo afetada. No lugar da constância, há o enfraquecimento dos laços. No lugar da segurança, há vulnerabilidade. No lugar do diálogo e do entendimento, a necessidade de punir o outro pelos conflitos que surgem parece imperar.

A questão é: até que ponto apenas punir repara danos e restaura relações? Muito se ouve falar na expressão “fazer justiça” relacionada à atribuição da culpa e aplicação de uma pena como forma de compensar as consequências de uma violação de direitos. Mas qual a compensação que se busca? A da vítima, fragilizada? Ou a da sociedade na ânsia de fazer alguém “pagar pelo mal que causou”?

Em 2016, o Conselho Nacional de Justiça delineou a Resolução nº 225 para consolidar a identidade da Justiça Restaurativa. O termo é desconhecido para alguns, mas, em suma, ele define o entendimento de que qualquer crime ou infração é, na verdade, uma violação à relação interpessoal. O papel da Justiça seria, portanto, o de restaurar essas relações e não apenas apontar culpados.

De acordo com o Manual Sobre Programas de Justiça Restaurativa do CNJ, o fundamento desta abordagem é a crença de que as pessoas envolvidas ou afetadas pelo conflito devem participar ativamente na reparação do dano, amenizando sofrimentos e prevenindo a recorrência.

Aqui no Piauí, cabe ao Núcleo de Práticas Autocompositivas e Restaurativas do Ministério Público, o NUPAR, fomentar as soluções consensuais e reforçar a atuação resolutiva do MPPI nos processos instaurados e judicializados. Criado efetivamente em março de 2022, o NUPAR busca disseminar boas práticas, tanto compositivas quanto restaurativas, através do Projeto Reconstruindo Vínculos. Uma das frentes de atuação é justamente nos abrigos de acolhimento institucionalizado de crianças e adolescentes.

Coordenado pela promotora de Justiça Cynara Barbosa, o NUPAR conta com uma equipe multidisciplinar capacitada para atuar na escuta atenciosa, no acolhimento das partes envolvidas em conflitos e fazer a mediação entre elas de modo a restaurar a cultura de paz. Isso é feito através dos chamados Círculos de Construção de Paz.

Foto: Nathalia Amaral/O Dia

Em resumo, o processo é encaminhado ao NUPAR por alguma das promotorias do MP, a equipe do Núcleo analisa o caso e entra em contato com as partes para ouvir cada uma separadamente e entender qual a melhor forma de atuar. A promotora Cynara Barbosa destaca que é preciso sensibilização do profissional que está à frente do caso para aplicar a Justiça Restaurativa.

Eu penso que se a justiça quer restaurar vínculos e não apenas culpabilizar e punir, ela tem que focar mais nas pessoas. Aqui, nós focamos nas pessoas", afirma a promotora Cynara Barbosa.

Ela lembra de um caso recente encaminhado ao NUPAR pela 46ª Promotoria da Infância e da Juventude em que dois adolescentes entraram em conflito após um deles arremessar uma pedra no outro. O caso foi resolvido através do Círculo de Paz sem precisar de judicialização, o que levou à rapidez na resolutividade e restauração da paz entre os envolvidos.

“A Promotoria nos enviou esse caso e, através dessa primeira escuta atenciosa da família de cada adolescente, começamos a trabalhar concretamente a tolerância. O vínculo está sendo restaurado e hoje nós sabemos que os dos jovens conseguem conviver. Daí você percebe o avanço que tivemos ao invés de processar esse menino só buscar punir no lugar de trazer paz”, explica Cynara.

Foto: Nathalia Amaral/O Dia

Mas nem sempre a busca pela mediação acontece sem mais conflitos. É que a Justiça Restaurativa parte do pressuposto de que as partes estejam dispostas a colaborar com a restauração do vínculo. Quando há resistências na escuta, a equipe traça um plano de ação para sensibilizar os envolvidos a perceberem a importância de resolver o conflito sem precisar instaurar um procedimento judicial.

Nos casos dos abrigos de acolhimento institucional, em que o vínculo família-adolescente está fragilizado ou rompido, a equipe do NUPAR faz um mapeamento para identificar em quais casos é possível aplicar a Justiça Restaurativa.

“A chave é compreender sem nenhum julgamento e, principalmente, ouvir de forma sigilosa para que eles se sintam à vontade dentro daquele momento com a gente. Queremos que essa criança ou esse adolescente se sintam livres para se reconstruir e viver em paz dentro daquele núcleo familiar e daquela comunidade”, enfatiza Rafaela Íris, psicóloga e facilitadora do Círculo de Construção de Paz do NUPAR.

A ideia é fazer com que as partes reconheçam suas atitudes e busquem reparações

O Núcleo de Práticas Autocompositivas e Restaurativa também pode ser acionado pelas demais promotorias do Ministério Público mesmo em casos já judicializados e que estão em investigação. Foi o que aconteceu com um processo por injúria racial movido pelo funcionário de um restaurante em Teresina contra seu gerente. O caso tramitava na 49ª Promotoria de Direitos Humanos e chegou ao NUPAR após serem esgotadas todas as tentativas de acordo judiciais.

“Convidamos as duas partes e as ouvimos separadamente para explicar o que iríamos fazer. Elaboramos um plano de ação, que é específico para cada caso. Fizemos, então, o acolhimento da vítima e vimos que ela estava muito debilitada emocionalmente pelo que tinha acontecido. Ele tinha muitas perguntas para as quais nós não tínhamos resposta, mas sabíamos que quem poderia responder era a outra parte, o suposto agressor. A vítima não aceitou esse encontro e o suposto agressor não reconheceu que tivesse praticado um delito. Anda estamos com o caso em andamento buscando uma solução para o conflito”, relata a psicóloga Michele Rodrigues, mediadora judicial e facilitadora em Círculos de Paz do NUPAR.

Foto: Nathalia Amaral/O Dia

Ela explica que, diferentemente da justiça convencional, que aponta culpados, a Justiça Restaurativa busca fazer com que o agressor/violador de direitos/transgressor reconheça a própria culpa, reconheça os danos que causou à vítima e busque formas de repará-los por si mesmo e não só porque será penalizado.

As estratégias para que isso aconteça envolvem uma abordagem mais focada nos envolvidos, afinal a reconstrução de vínculos pressupõe o entendimento entre pessoas. É nelas que a atenção precisa ser depositada para que os fatos sejam descortinados e aclarados. A promotora Cynara Barbosa chama este processo de “empoderamento dos envolvidos” para que eles mesmos tomem a decisão de resolver os conflitos.

Foto: Nathalia Amaral/O Dia

A representante do MP explica que o primeiro passo é deixar as partes à vontade, criando um ambiente acolhedor para elas. “Quando chega um caso de urgência para audiência, nós pensamos em como criar um ambiente mais tranquilo para que a pessoa se sinta confortável e segura. Agimos pelo princípio da autonomia e da vontade das partes, porque a vida é delas e elas que têm tomar as decisões e resolver”, diz Cynara Barbosa.

As audiências promovidas pelo NUPAR com a abordagem da Justiça Restaurativa são conduzidas não apenas por profissionais do Direito. Há também a participação de psicólogos, pedagogos e assistentes sociais. Qualquer profissional que se disponha ao diálogo e que saiba atuar na escuta compassiva, lançando um olhar que vai além do que a lei propõe, pode atuar como um mediador.

No último dia 25 de agosto, o NUPAR promoveu um curso de capacitação e formação de mediadores extrajudiciais no Ministério Público do Piauí. O objetivo era justamente disseminar as propostas das políticas de solução consensual de conflitos sociais promovidos pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e o Conselho Nacional de Justiça. No encontro foram abordados os aspectos gerais do processo e mediação e conciliação, o papel do mediador frente ao processo de conciliação e um panorama deste tipo de procedimento.

Conforme afirma a promotora Cynara Barbosa, as ações visam basicamente sensibilizar os profissionais que atuam em processos judiciais para os princípios da mediação. A busca é pela equidade e o equilíbrio.

“A Justiça Restaurativa busca esse equilíbrio entre as partes e reconhece a independência delas com imparcialidade, preserva a autonomia da vontade, age com confidencialidade por meio da oralidade e prioriza as decisões dos envolvidos. É isso que buscamos fortalecer: a busca pela compatibilização de interesses e necessidades entre as partes. Se as partes se tornam compatíveis, aí sim podemos tratar de reconstruir esses vínculos”, finaliza a representante do MP.

*Nome fictício para preservar a identidade do personagem.